Nem tudo é jornalismo de massagem, nem jornalismo de trampolim. Também temos o jornalismo desfibrilhador
Vivemos num mundo altamente complexo e interdependente, cheio de inseguranças e ameaças.
A crise levou a pobreza a dezenas de milhões de pessoas na Europa que se juntaram a outros tantos que já viviam na margem da sociedade, numa pobreza hereditária, sem esperança, esquecidos nos subúrbios.
O único paradigma que funciona é o dos mercados, que condicionam as decisões politicas, e foram assumindo o papel que tradicionalmente era desempenhado pelos Estados.
São os gigantes económicos sem rosto, insaciáveis, amorais, que determinam o nosso estilo de vida, a forma de como consumimos, os valores que guiam os nossos atos, e a ilusão de que pensamos por mérito próprio.
Refiro-me à Apple, Google, Facebook e Amazon, que se assumiram como a encarnação da nova racionalidade em que progride a sociedade contemporânea.
Estes novos deuses que prometem colocar mais longe, mais rápido, com cada vez menos de nós e do real, estão de facto a deixar-nos cada vez mais isolados, fragilizados e insignificantes, numa realidade unidimensional, destorcida e doentia.
Somos escravos voluntários numa relação em que a liberdade tecnológica nos conduz a uma submissão intelectual.
O que recebemos é a aparência e a simulação do real. A razão é pura ilusão, e a experiência foi substituída pela digitalização dos sentimentos, somos conduzidos para uma fragmentação da vida através das redes, entendidas, como sociais.
Nesta luta pelo direito a experimentar uma ideia, e da redescoberta do real, os jornais e os jornalistas têm uma função única.
Albert Camus dizia: “Um país vale o que vale a sua imprensa” Lamentava-se de que tinha feito demasiadas concessões e arrependia-se dos silêncios oportunistas que lhe tinham permitido salvar o seu posto de trabalho.
Claro que os jornalistas não realizam o seu trabalho no vazio e seria enganar as pessoas afirmar que dispõem de uma liberdade absoluta.
Mas pode-se lutar por dizer a verdade e contar aos leitores o que sucede à nossa volta. Os factos são o que interessa, não as opiniões.
Para nos sentirmos humanos aqui e agora, para nos resgatarmos da nossa própria indolência, para voltarmos ao que uma vez fomos, para esperarmos redenção, necessitamos dos factos, mas com dor.
Precisamos quebrar o espelho onde nos olhamos todos os dias, pegar num pedaço de vidro e fazermos um golpe. Confrontar a dor. Olhar o golpe. Sentir a ferida e a náusea.
Uma conhecida cantora de flamengo dizia que sabia que tinha cantado bem quando a boca lhe sabia a sangue.
O bom jornalismo é o que nos enche de marcas como feridas de navalha, o que te recorda que és humano, o que não te vai deixar dormir.
Vejam o documentário do “The New York Times” intitulado “4.1 Mile”. O titulo faz referencia às milhas de distância entre a Turquia e a ilha grega de Lesbos.
São apenas 22 minutos e vão assistir a crianças resgatadas do Mar Egeu por um marinheiro grego chamado Kyriakos. Não é agradável de ver.
Vão ver Kyriakos a dar massagens cardíacas a meninos flácidos que estão a morrer. Ou a tentar reanimar uma menina nua batendo-lhe nas costas. Vão ver Kyriacos, silencioso, ao leme, dizer: “O mundo tem que saber o que se passa aqui”.
Vão ver um menino, recém resgatado, enquanto outros caem à agua no meio de uma tempestade feroz, gritar à mãe entre lágrimas: “O pai subiu ao barco?” O pai não subiu. nem subirá.
Podem ver um homem a afogar-se, mas que antes de desaparecer no fundo do mar estica o seu braço, na mão sustém um bebé.
Cabe ao leitor decidir se deseja ser um cidadão ou um número de identificação fiscal presumido de livre.
Nem tudo é jornalismo de massagem, nem jornalismo de trampolim. Também temos o jornalismo desfibrilhador.
Artur Pereira
Consultor de comunicação
Jornal i 03.11.2016