Por estes tempos, dei por mim a recordar-me dos avisos de gente como Frantz Omar Fanon relativamente ao efeito contraproducente do conceito de “União Africana” como arma a utilizar contra o colonialismo. Na verdade, em muitos países esmagados pela opressão colonial, a absorção tática, por parte dos países colonizadores, da ideia de uma mítica “União Africana” foi utilizada para apagar as suas responsabilidades e acordar conflitos numa criada “unidade absoluta”, evidentemente impossível, que perdeu o foco no opressor e dividiu-se.
Os povos oprimidos, e com a sua opressão fundamentalmente definida pela colonização, caíram muitas vezes na armadilha do conceito inventado, o que se traduziu em tornar as diferenças religiosas, étnicas ou outras, bem como a “história de quem chegou primeiro à história do saque” em conflitos internos violentos, desagregadores, sangrentos, deixando os verdadeiros autores dos séculos da sua submissão caírem na opacidade, como lhes convinha.
Lembrei-me disto pelo erro fatal presente em tudo o que é imposto de cima para baixo, sem atenção às especificidades do que se está a incluir na construção em causa, como aconteceu com a mimetização dos regimes totalitários por parte dos partidos elitistas que negociaram as independências africanas, totalmente alheios, por exemplo, à base rural e comunitária das suas sociedades, onde gente silenciada durante séculos continuou sem voz e sem espaço na importação de doutrinas que não incluíam, desde logo, o campesinato.
Lembrei-me disto porque a UE tem tiques de entidade colonial. Invoca nos seus discursos os grandes
valores que “nos unem”, “ela” que avançou vertiginosamente de cima para baixo, quando na verdade vive a três vozes, apresentando a cara jurídica da igualdade e a prática de uma potência colonialista, com representantes de quem manda, mesmo que informalmente, a tratarem de se substituir ao decisor “local”, aqui os parlamentos.
Somos 28 a caminho de 27 e não somos todos iguais em riqueza, história ou em condições socioculturais. Aquilo em que somos juridicamente iguais é em direitos e quem manda na UE proclama a igualdade sem dizer de que igualdade está a falar, mostrando na prática que está a induzir a desigualdade, quer no plano jurídico, quer no plano da extração dos recursos conforme se esteja em consonância com a política única do colonizador ou se tenha o atrevimento de decidir pelo voto ultrapassar a “capitania” e decidir por uma outra política.
Quando se dá este último atrevimento, o tique colonial da UE transforma-se em murro. Podemos estar sob ataques terroristas e a assistir a um cemitério no mediterrâneo, mas quem manda tem problemas domésticos, como a Alemanha, quem manda tem de afastar as atenções da trapalhada da saída do Reino Unido, quem manda tem de dizer que os tratados são para cumprir, “porque somos todos iguais”, a ver se desatamos a gritar uns com os outros, a ver se a causa da revolta repousa no indicador equivocado, a ver se a confusão é tanta que no final pareça razoável que de facto os novíssimos “fundadores” ponham ordem em nós, os selvagens.
No meio da desordem, pode ser que enquanto discutimos o sonho de uma “Europa unida”, sem dar conteúdo à expressão, sem lhe dar paradigma, fique pelo caminho a urgência de denunciar este horror colonial: quem manda continua a tentar explorar ao máximo as riquezas dos outros em proveito próprio; quem manda continua a tentar explorar a mão de obra, o que em linguagem atual é a política única, sob pena de sanções, de mercado laboral selvagem; quem manda continua a impedir o desenvolvimento interno dos países do sul; quem manda continua a desconsiderar em absoluto as especificidade das populações de cada Estado; quem manda continua a ser um opressor sorridente perante a subserviência.
Gostar da ideia de ser membro de uma associação de estados como a UE não passa por ficar calado em nome de uma utópica “União”, essa que nos discursos vai recordando a utópica “união africana”. Pelo contrário, trata-se de querer uma UE concreta, democrática, respeitadora de todas e de todos, sem diretórios, sem poderes informais, sem opressões. Para se dizer o que se quer, tem de se dizer o que se não quer.
Não quero ser uma colonizada.
Isabel Moreira
Visão 11.08.2016