Adaptando a expressão muito portuguesa a «cereja no cimo do bolo», é caso aqui para dizer um «cherne no cimo de um polvo»
O nosso mundo está frenético e tudo ‘gira’, incluindo as portas entre o público e o privado, a uma velocidade vertiginosa.
Em menos de um mês somos campeões da europa de… quase tudo… do futebol ao atletismo, passando pelo judo e salto em comprimento e, imagine-se, até do surf(!)… é caso para dizer que neste mar que é nosso, apanhamos uma ‘boa onda’!
Por momentos, ainda que eventualmente breves, somos um “nobre povo” e uma “nação valente” (como ecoa a Portuguesa). Longe parece estar a imagem do povo de Guerra Junqueiro “um povo… resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo… um povo em catalepsia ambulante”.
Parecemos quase os ‘intocáveis’, embora para muitos sejamos apenas os ‘improváveis’.
Para o nosso Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que por estes dias não faz outra coisa que não seja condecorar, é um gosto “ver portugueses reconhecidos em lugar cimeiros” e não apenas no desporto. Referindo-se à recente ‘promoção’ de (um eterno, mas bem sucedido, ‘improvável’) Durão Barroso a presidente do conselho de administração do Goldman Sachs International, após ter sido durante uma década presidente da Comissão Europeia, o presidente Marcelo congratulou Barroso por este ter atingido “o topo da vida empresarial”!
Adaptando a expressão muito portuguesa a “cereja no cimo do bolo”, é caso aqui para dizer um ‘cherne no cimo de um polvo’.
O poder e a influência que o Goldman Sachs exerce no âmbito da política e das finanças não são um acaso. Desde há muito considerada a empresa mais admirada entre os bancos de investimento de Wall Street, o Goldman Sachs tem uma história e cultura de encorajar os seus colaboradores a assumir papéis de liderança no serviço público. Por exemplo, o atual presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mário Draghi, foi vice-presidente do Goldman Sachs para a Europa de 2002 e 2005. As ligações ‘íntimas’ da Goldman Sachs com a ‘elite’ política europeia envolve(u) outros nomes como Romano Prodi, ex-ministro italiano e presidente da Comissão Europeia entre 1999 e 2004, Mário Monti, ex-ministro italiano, Lucas Papademos, ex-ministro grego, Vice-Presidente do BCE de 2002 a 2010 e governador do Banco Central Grego de 1994 a 2002, período em que ocorreram as controversas negociações com o Goldman Sachs envolvendo um produto financeiro ‘swap’ que permitiu dissimular uma parte da dívida soberana e maquilhar as contas gregas.
Derivado de muitos dos seus colaboradores terem sido posteriormente integrados em governos de diferentes países o Goldman Sachs ganhou o pejorativo apelido de ‘Governo Sachs’.
São inúmeros os casos, como o de Durão Barroso, que após longos anos de serviço público em organismos nacionais e supranacionais passaram a integrar a fileira de colaboradores/consultores do Goldman Sachs. Para mencionar apenas alguns: Robert Zoellick (ex-presidente do Banco Mundial), Erik Åsbrink (ex-ministro das Finanças sueco), Efthymios Christodoulou (ex-governador do banco central grego, também passou pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional), Guillermo de la Dehesa (ex-secretário de Estado de Economia e Finanças espanhol, trabalhou para o Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial), Otmar Issing (foi economista principal no BCE e fez parte da comissão executiva do Bundesbank/Banco Central Alemão), Ian Macfarlane (governador do Banco Central da Austrália entre 1996 e 2006).
As ligações acima descritas estão associadas a um fenómeno que tem preocupado, de forma crescente, muitas democracias: as ‘portas-giratórias’. As ‘portas-giratórias’ traduzem a contratação de ex-governantes e burocratas pelo sector privado para exercerem funções, na maioria dos casos, em domínios nos quais eles foram responsáveis enquanto funcionários públicos.
A grande preocupação com as ‘portas giratórias’ reside na possibilidade de os ex-burocratas poderem usar ligações pessoais com ex-colegas no sentido de influenciar a tomada de decisão ao nível da política/governo, colhendo benefícios para as suas (atuais) organizações e para si mesmos. Na ausência de supervisão, tais ‘portas giratórias’ podem potenciar a ‘captura do regulador’, uma forma de corrupção política, em que uma entidade criada para agir de acordo com o interesse público fica refém de interesses comerciais ou políticos de grupos/empresas particulares, prejudicando, em última análise, uma tomada de decisão íntegra por parte das autoridades de política e/ou uma atuação contra o interesse público.
O efeito cumulativo das ‘portas giratórias’ é que os interesses dos regulados começam a confundir-se com os interesses do regulador – a área da regulação bancária é um ‘bom’ exemplo dos estragos provocados por este fenómeno.
Não obstante o tratado que rege o funcionamento da Comissão Europeia apontar que “… quando deixam as funções, [os ex-comissários] têm o dever de se comportar com integridade e discrição no que toca à aceitação de certas nomeações ou benefícios”, Durão Barroso, ao aceitar integrar os quadros do Goldman Sachs, não fez aparentemente nada de ‘ilegal’, tendo até cumprido o designado ‘período de nojo’ (18 meses) que se aplica atualmente aos ex-comissários europeus.
A questão mais importante, no entanto, não é a natureza legal/ilegal do ato, mas antes as consequências e o potencial de conflitos de interesse e de corrupção política que tal ato pode encerrar.
Atingir “o topo da vida empresarial” com “o jeitinho português”, é, no mínimo, questionável; no entanto, nestes tempos ‘épicos’, de elevação do ego nacional, se isso “é mau ou bom, se se deve ou não mudar… [parece] não… [dar] jeito pensar neste momento.” (Miguel Esteves Cardoso, As Minhas Aventuras na República Portuguesa).