Uma pensionista que conheço, daquelas que ganham para cima de 250 euros mensais, uma fortuna, está há dez dias sem ter notícias da reforma que já devia ter recebido. Da Segurança Social dizem-lhe que o vale foi emitido pelos correios a 9 de março. Nos CTT, agora empresa privada, não fazem puto de ideia do que aconteceu à taluda da senhora. Que peça uma segunda via, dizem-lhe, que daqui a 30 dias o dinheiro chega-lhe a casa. Até lá, aguente-se. Vale-lhe ter uma família que não a deixa ficar sem remédios e a morrer de fome. E de quem é a culpa? Vai-se a ver e, com um bocado de sorte, é do carteiro.
Vem isto a propósito das demissões na Autoridade Tributária por causa da chamada “lista VIP”. Pouco me importa, nesta fase, a discussão sobre se o pacote de nomes a proteger de olhares indiscretos deve ou não existir. Até por uma razão elementar: se em Portugal vigora o princípio do sigilo fiscal, e se todos os cidadãos são iguais perante a lei, o sistema não pode beneficiar uns mais do que outros. Isto é, como em tudo o resto, também em matéria de coscuvilhice ou há moralidade ou comem todos.
À luz do que sabemos, a famigerada lista existe mesmo. E, fazendo fé no que nos diz o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais – coisa perigosa esta de confiar, hoje em dia, na palavra de quem governa -, tudo foi feito nas suas costas, apesar de bem debaixo do seu nariz. Como de costume, lixou-se o mexilhão, ou seja, para proteger um membro do governo caíram um diretor-geral e o seu adjunto.
Esta maneira de resolver as coisas não é nova. O atual governo é, aliás, useiro e vezeiro neste ardil. O primeiro-ministro, então simples cidadão, não paga o que deve em tempo útil à Segurança Social, mas a culpa é dos serviços que não o notificam das suas obrigações com o Estado. O Citius da Dra. Teixeira da Cruz não funciona, mas quem é despedido é o presidente do instituto responsável e é um vogal para a área informática do sistema. A fórmula do matemático Nuno Crato para colocar os professores gera o caos nas escolas, mas o demitido é um diretor-geral de costas tão largas capazes de arcar com a incompetência de um ministério inteiro. E por aí adiante, porque responsabilidade política é coisa que esta gente não sabe, manifestamente, o que é.
Em matéria de dignidade salva-se Miguel Macedo. Como é óbvio, o ex-ministro da Administração Interna nada tinha que ver com as alegadas tropelias douradas dos seus subordinados. Mas, como o próprio explicou a 16 de novembro de 2014, “apesar de não ter qualquer responsabilidade pessoal, no plano político as circunstâncias são de natureza distinta (…) O ministro [leia-se membro do governo] tem de ter sempre uma forte autoridade para o exercício pleno das suas responsabilidades. Essa autoridade ficou diminuída”. Que parte desta declaração é que Paulo Núncio ainda não percebeu? Que confiança podemos ter num secretário de Estado que, além de nos fazer desconfiar da máquina fiscal, não controla o que se passa dentro da sua própria casa?
Disse um dia Molière que “não só somos responsáveis pelo que fazemos, mas também pelo que não fazemos”. Não iria tão longe. Mas no caso de um membro do governo, a verdade é que, no plano político, a responsabilidade é total, seja por aquilo que se sabe seja por aquilo que não se sabe – ou não se quis saber – e se tinha obrigação de saber.
Dito isto, e voltando à história da reformada, seria bom que, neste caso, o primeiro-ministro, ele próprio “enganado” pelas certezas absolutas do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, não se limitasse a atirar as culpas para cima do carteiro, isto é, do diretor-geral. E, em vez de varrer o assunto para debaixo do tapete, Passos Coelho devia era demitir imediatamente Paulo Núncio. Mas como a história nos tem mostrado, desconfio que este secretário de Estado, à semelhança de outros membros do governo, deve ter o seu nome inscrito numa outra lista afixada nos gabinetes de São Bento, a dos irresponsáveis VIP.