Justiça

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Justiça Constitucional e Princípio Democrático

1. Em estritos termos jurídicos, a legitimidade de um Tribunal Constitucional ou de órgão homólogo não é maior, nem menor do que a dos órgãos políticos: advém da Constituição. E, se esta Constituição deriva de um poder constituinte democrático, então ela há-de ser, natural e forçosamente, uma legitimidade democrática.
Perspetiva diferente abarca o plano substantivo das relações interorgânicas, da aceitação pela coletividade, da legitimação pelo consentimento. Como justificar o poder de um Tribunal Constitucional (ou de órgão homólogo) de declarar a inconstitucionalidade de uma lei votada pelo Parlamento ou pelo próprio povo? Como compreender que ele acabe por conformar não só negativamente (pelas decisões de inconstitucionalidade) mas também positivamente (pelos outros tipos de decisões) o ordenamento jurídico? Como conciliar, na prática, a fiscalização jurisdicional concentrada e o princípio da constitucionalidade com o princípio de soberania do povo?
Obviamente, está aqui em jogo, não qualquer conceção de democracia (das muitas que têm sido propostas e das muitas que diferentes regimes invocaram no século XX), e tão só a conceção de democracia pluralista e representativa de matriz ocidental (em que nasceu a justiça constitucional há mais de 200 anos e que se desenvolveu sobretudo após 1945, tendo à cabeça nos Estados Unidos, no Brasil e noutros países um Supremo Tribunal e, na Europa, um Tribunal Constitucional).
Ora, se democracia postula maioria – com as múltiplas interpretações e reelaborações filosóficas e teoréticas de que tem sido alvo – não menos, naturalmente, ela postula o respeito das minorias e, através ou para além dele, o respeito dos direitos fundamentais. Critério de decisão, a regra da maioria não se reconduz a simples convenção, instrumento técnico ou presunção puramente negativa de que ninguém conta mais do que outrem; reconduz-se à afirmação positiva da igual dignidade de todos os cidadãos, e reconduz-se ao reconhecimento de que a vontade soberana se forma no contraditório e na alternância.
Assim sendo, a fiscalização, mesmo quando de carácter objetivista, em último termo visa a salvaguarda dos valores de igualdade e liberdade. Toma-os como pontos de referência básicos quando dirigida ao conteúdo dos atos, à inconstitucionalidade material. E tão pouco deixa de se lhes reportar, quando voltada para a inconstitucionalidade orgânica e formal, na medida em que não se concebe maioria sem observância dos procedimentos constitucionalmente estabelecidos. Ela só é contramaioritária ao inviabilizar ou infringir esta ou aquela pretensão de maioria, não consistente no contexto global do sistema.
2. Os Tribunais Constitucionais (tal como os Supremos Tribunais americano e brasileiro) aparecem com estrutura arredada da estrutura dos demais tribunais, com juízes escolhidos, todos ou quase todos, pelos Parlamentos e (ou) pelos Presidentes da República sem atinência (ou atinência necessária) às carreiras judiciárias.
Ora, pergunta-se como pode um tribunal com juízes designados desta maneira vir a sindicar os atos daqueles órgãos; como pode a criatura fiscalizar o criador; como pode um tribunal assim composto não reproduzir a composição do Parlamento ou a orientação do Presidente. Essa a aporia do tribunal constitucional: se lhe falta a fonte de designação por órgãos representativos carece de legitimidade; se a recebe, dir-se-ia ficar desprovido de eficácia ou utilidade o exercício da sua competência.
Mas não. É, justamente, por os juízes constitucionais serem escolhidos por órgãos democraticamente legitimados – em coerência, por todos quantos a Constituição preveja, correspondentes ao sistema de governo consagrado – que eles podem invalidar atos com a força de lei. É por eles, embora por via indireta, provirem da mesma origem dos titulares de órgãos políticos que por estes conseguem fazer-se acatar.
Os membros do Tribunal Constitucional não se tornam representantes dos órgãos que os elegem ou nomeiam, não estão sujeitos a nenhum vínculo representativo (muito menos, são meros comissários políticos de quem os indica). Muito pelo contrário, uma vez designados, são completamente independentes e beneficiam de garantias e incompatibilidades idênticas às dos demais juízes; para garantia dessa independência, os seus mandatos não coincidem com os dos titulares do órgão de designação, são mais longos e, por princípio, insuscetíveis de renovação; e, quando de eleição parlamentar, de ordinário requer-se maioria qualificada.
É o que se verifica, em Portugal, com dez juízes eleitos por maioria de dois terços pelo Parlamento e três por eles cooptados pela mesma maioria; e sendo aqueles eleitos, na base de um acordo tácito (que remonta à entrada em funcionamento do Tribunal em 1983) entre os dois maiores partidos, o PSD e o PS, cada um dos quais propõe cinco candidatos, mas o outro pode recusar – donde, uma designação consensualizada e, tanto quanto possível, equilibrada. E ainda com um mandato de cada juiz de nove anos e, para assegurar a continuidade, com a substituição de metade dos juízes de quatro anos e meio em quatro anos e meio.
3. Num Tribunal Constitucional ou em órgão homólogo podem e devem coexistir diversas correntes jurídicas e jurídico-políticas; e, mesmo se, em órgão parlamentar, se dá a interferência dos partidos nas candidaturas (porque, quer se queira quer não, a democracia atual é uma democracia de partidos ou com partidos), essas correntes atenuam-se e, aparentemente, diluem-se, em virtude dos fatores objetivos da interpretação jurídica e, sobretudo, em virtude do fenómeno de institucionalização que cria dinâmica e autonomia do órgão. Tudo isto sem esquecer a exigência de fundamentação jurídica de decisões (art. 205º, nº 1 da Constituição), esta, sim, a escrutinar pela opinião jurídica.
Nisto tudo (insista-se) reside a especificidade da figura (ou, se se preferir, a sua ambivalência): uma legitimidade de título assimilável à dos titulares dos órgãos políticos; uma legitimidade de exercício idêntica à dos juízes dos tribunais comuns.
Jorge Miranda
Professor catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa, Constitucionalista.