Ouvindo estas vozes, exigindo que a única política europeia seja “levar o Syriza à derrota” para evitar o contágio, sem transigências e com toda a dureza, eu penso como nestes últimos anos nós não tivemos só discussões políticas e ideológicas (poucas aliás, a sério), alimentámos o mal. O mal. Nalguns sítios da nossa sociedade gerámos, alimentámos, engordámos, trouxemos à luz do dia gente má, muito má, que mandou e manda em nós, instilando arrogância, desprezo pelos mais fracos, insensibilidade face à miséria, gente que olha os gregos como se fossem untermenschen. Do alto do seu conforto, sim porque o conforto distingue-os da ralé, eles andam a passear-se nestes dias com uma enorme espinha na garganta, mais do tamanho de uma trave do que de uma espinha, e não gostam. Obrigado aos gregos por terem ensinado aos maldosos que a sua impunidade tem limites.
O fim do bloqueio europeu
Um dos resultados mais positivos das eleições gregas é terem acabado com o bloqueio que as políticas da “inevitabilidade” traziam à Europa. O isolamento alemão (e português) é maior, e todos os outros países têm hoje razões e obrigações de mitigar, moderar e mesmo, num certo sentido, acabar com a hegemonia alemã das políticas de austeridade. A decisão e o maior protagonismo do Banco Central Europeu já abria caminho para essa inversão. Draghi não se limitou a propor uma medida “técnica” contra a inflação negativa, mas explicou preto no branco que as políticas anteriores tinham dado mau resultado e propôs-se aplicar uma medida que classificou de “expansionista”. Não admira que Passos Coelho não tenha gostado, as suas declarações, inequívocas neste caso, consideravam estas políticas como “erros”.
Mas o soçobrar do bloqueio da “inevitabilidade” (aquilo que mais dói aos detractores das eleições gregas) vai tornar mesmo governantes fracos como Hollande, um obstáculo para o curso punitivo que Merkel, Rajoy e Passos desejariam “para derrotar um governo do Syriza”. Eu não tenho nenhuma especial simpatia por Hollande, mas não o estou a ver a assinar de cruz medidas punitivas contra os gregos e, sem a França, a hegemonia alemã enfraquece muito. É isso que significa o desfazer do bloqueio: há hoje alternativas políticas que seriam impensáveis há seis meses. Obrigado aos gregos por terem permitido a possibilidade de uma melhor Europa.
Não vai ser fácil
Todos sabemos que o caminho dos gregos não é fácil. Sabemos, a começar pelos gregos, que enormes dificuldades vão estar pela frente. Mas pela primeira vez depois destes anos de lixo, foram eles próprios que escolheram o caminho das pedras que queriam trilhar e não os alemães e os burocratas europeus. Faz uma enorme, gigantesca diferença, este assumir de dignidade nacional para um país que foi humilhado como poucos.
E é uma bofetada de luva branca para muitos que enchem a boca com a “Pátria”, para depois a descreverem como um “protectorado”, que aceitaram com aplauso abdicar de todos os traços da nossa soberania, e transformarem Portugal num vassalo obediente, muito além do que seria razoável pelas nossa atribulações financeiras, que tenha sido um partido que descrevem com desprezo como de “extrema-esquerda”, que restituiu à Grécia a honra perdida.
Sim, porque na vitória do Syriza o conteúdo do seu programa foi o que menos contou, mas a afirmação da independência e da soberania de um povo que não esqueceu as violências que os alemães fizeram na Segunda Guerra Mundial, e os insultos à Grécia na última década, e a vontade de varrer a elite política nacional corrupta que foi o seu instrumento. Uma vitória destas não se obtém sem ser pelo contra, por aquilo que os gregos não queriam. Depois virá o resto. Obrigado aos gregos por nos terem ensinado que em tempos de lixo o que verdadeiramente mobiliza a mudança é o que não se deseja, e só depois de se ter atirado borda fora esse lastro é que se pode começar a falar outra língua.
Afinal os gregos não fazem tudo mal
Portugueses, aprendam com os gregos! Eleições no domingo, coligação durante a noite, governo na tarde do dia seguinte. Obrigado aos gregos por nos darem lições de eficácia.