O tempo mostrará como a pior herança destes dias de lixo que vivemos já há vários anos será de carácter moral. Moral de moral social, cultural e política, atingida no seu cerne pela emergência de uma forma de egoísmo social que se materializa em profundas divisões entre diferentes grupos na sociedade e pela tendência de se ser egoísta olhando para o lado, para o vizinho, ou para os pais dos colegas do filho na escola, ou para o companheiro de trabalho, para a mesa do café do lado, para o que recebe mais 10 euros do que eu, em vez de se olhar para cima, para o exercício do poder e para as suas opções. Lá em cima, agradece-se.
Populismo
Este populismo egoísta, que atinge as pessoas e as nações, tem sido incentivado pelo discurso do poder e ao fortalecer um populismo que é sempre anti-sistema, isola o poder da competição democrática, estiola as alternativas e tende a perpetuar -se. São cada vez menos, mas cada vez mais poderosos.
Uma das razões de sucesso desta imoralidade triunfante é que ela fornece uma panaceia para o ego ofendido de muita gente. Convencidos de que não podem mudar nada – não há alternativa –, o vizinho serve de bode expiatório. Num país (ou numa Europa) atingido por uma anomia profunda – resultado entre outras coisas do apagamento das diferenças históricas entre uma direita de interesses e uma esquerda que de há muito soçobrou aos mesmos interesses, e refiro-me aos socialistas cujo papel na castração da acção colectiva é enorme –, o que hoje se está a dividir, dificilmente se juntará.
A sementeira do egoísmo
A sementeira deste egoísmo, de que o nosso governo foi exemplo nestes últimos quatro anos, e que a crise grega mostrou também ao nível europeu, cria divisões profundas de que as sociedades e as nações só muito dificilmente se livram. Como será a Europa quando o alvo não for a Grécia? E se for a Finlândia, ou a Itália, ou a França ou Portugal? Claro que haverá duplicidade, mas o mal já está feito.
Deixem lá estar no fundo o que não deve vir ao de cima
Os cínicos podem dizer que este egoísmo sempre esteve lá no fundo. É verdade. Mas sabendo eu que sempre esteve lá no fundo, desejaria que continuasse lá no fundo, para bem da sanidade da nossa vida colectiva e da vida em democracia. Se está lá no fundo, deixem-no estar que está bem. Lá no fundo está toda a selvajaria que o sentido cultural que deu origem à democracia não nega, mas não aceita. Que os homens são lobo dos homens sabemos bem demais, mas não convido uma alcateia a vir comer à mesa.
Nunca foi tão claro o que é uma política de interesses
Eu não gosto da facilidade classificatória da esquerda e da direita, evito usá-la, mas não lhe posso escapar porque o que tem de pouco teoricamente rigoroso tem de facilidade descritiva. Pois, a grande herança destes anos de poder da direita em Portugal e na Europa é este espírito egoísta da divisão, entre velhos e novos (talvez a mais escandalosa), entre empregados e desempregados, entre trabalhadores do Estado e do privado, entre ricos e pobres, entre “piegas” e submissos, entre indignados e colaboracionistas, entre nações que têm dinheiro e nações que precisam dele. Nunca foi tão claro o que é uma política de interesses. Nunca foi tão clara a diferença entre cidadão e servo. A isto Marx chamava “luta de classes”. A direita ressuscitou-o com esplendor para arregimentar as suas tropas.
Tratado de Versalhes
O único paralelo que conheço para o que está a ser feito aos gregos é Versalhes e as reparações impostas à Alemanha em 1919. A democracia de Weimar sempre foi frágil porque a situação social do povo alemão era um terreno propício a todos os radicalismos e comunistas e nazis exploraram isso até aos limites. Os nazis ganharam entre outras coisas porque o acordo imposto aos alemães no final da guerra implicava que a indústria alemã trabalhava para pagar as reparações, principalmente aos franceses. Nós também cá tivemos uma parte em locomotivas e em guindastes nos portos. Os nazis ganharam porque parte da Alemanha foi ocupada e as potências ocupantes extorquiram o máximo que puderam.
Um país ocupado
Se o acordo tão celebrado for adiante, o que ainda está longe de ser certo, a Alemanha e gente como Dijsselbloem vão governar a Grécia contra os gregos, a partir de Bruxelas, Frankfurt e Berlim. Não custa imaginar como o Syriza virá a ser lembrado como exemplo de moderação, face à nova extrema-esquerda que irá surgir. E a extrema-direita grega, uma das mais virulentas da Europa, não precisa de mudar, basta-lhe crescer. Os alemães e os seus gnomos podem vingar-se, como estão a vingar-se, do “não” grego, mas os europeus genuínos sabem que o mal está feito e vai muito para além do que está a acontecer à Grécia. O projecto europeu morreu.
Pacheco Pereira
Opinião Sábado 17.07.2015