No início da década de 90, operou-se uma série de privatizações de empresas públicas. A história, quase sem excepções, foi esta: banca, seguros, telecomunicações, estivadores, Lisnave e outras empresas metalomecânicas, etc., mandaram para casa, em situação de pré-reforma, dezenas de milhares de trabalhadores, que, com 42, 50, 55 anos, foram declarados doentes – mentais, físicos ou hipocondríacos, todas as mazelas e achaques foram aceites.
Veio depois a energia, os transportes… Operou-se então a substituição destes por trabalhadores em situação de precariedade ou com contratos débeis. No país cresceram como cogumelos “empresas” em nome individual, já não a empresa da pequena família, mas umas “empresas” excêntricas, em que os ex-trabalhadores são “empresários”, mas o capital não se acumula nessa pequena empresa, só circula – acumulam-se dívidas e baixos salários. Preços, produção, timings, é tudo controlado na casa-mãe, na grande empresa, de que as pequenas são meras subsidiárias. Na casa-mãe, os lucros acumulam-se a níveis inéditos, justamente porque a grande empresa deixou de suportar a maior fatia de salários e prestações sociais e esta pequena empresa suporta todos os custos. Em média, numa empresa grande, o peso das contribuições para a Segurança Social, por exemplo, pode ser de 3% a 5%, e numa pequena isso representa 25% ou mais.
A PT, por exemplo, criou milhares de “heterónimos” e tem hoje 16.000 trabalhadores em subcontratações assumidas e em condições de trabalho inadmissíveis para padrões de produção do século XXI. Na EDP, o trabalhador electricista sofreu uma metamorfose em pequeno empresário, que presta, por exemplo, serviços de manutenção. Na EDP também, milhares de trabalhadores perderam as poupanças de uma vida comprando acções da própria empresa.
A isto juntou-se o trabalho precário mais móvel, um verdadeiro “exército industrial de reserva” oitocentista, os recibos verdes, jovens que ganham 500 euros e que, para não regredirem (ir viver para um subúrbio, alimentar-se mal, etc.), se mantiveram em casa dos pais até aos 25, 30, 35, 40 anos, pagando com isso o preço de uma infantilização histórica de toda uma geração que desconhece a palavra independência – os filhos da geração que fez a revolução contra a ditadura e o Estado social não têm liberdade sequer para sair de casa dos pais. Não têm asas. Tudo isto tem como auge, decadente, a destruição da Segurança Social, porque não há força de trabalho suficiente a ganhar e descontar.
A privatização da TAP exige uma reflexão não contingente. A TAP SGPS, SA emprega um total de 12.856 pessoas. Os gastos com pessoal são na ordem dos 571.855 milhões de euros, um valor normal para uma empresa que presta um serviço fulcral – o transporte de pessoas e mercadorias. A TAP é essencial na ligação de uma diáspora de cinco milhões de pessoas e assegura serviços que uma companhia privada não asseguraria por não ter uma taxa de rentabilidade média desejada.
O manifesto Não TAP Os Olhos é porventura o mais amplo manifesto em termos de espectro político português alguma vez assinado em Portugal. Este dado é de grande relevância porque mostra o isolamento total do Governo nesta opção.
Há três sindicatos na TAP que representam 60% dos trabalhadores que têm até aqui recusado a privatização. Mas nove dos 12 sindicatos assinaram um acordo com o Governo, em que aceitam a privatização a troco de miríficas promessas, demonstrando que o problema do país está longe de ser meramente governativo. A maioria das estruturas dos trabalhadores, anquilosadas, reféns de interesses corporativos ou agendas partidárias eleitorais, não contribui nem para a defesa dos seus associados, nem do país. Talvez seja por isso também que as taxas de sindicalização caem a pique, não ultrapassando hoje, nas empresas privadas, uns optimistas – e quanto a mim inflacionados – 9% e, nas públicas, 18%… A TAP está ameaçada de uma privatização que, na literatura de estudos do Estado, classificamos de clássica ou não clássica, mas o que vai acontecer no futuro está já em grande parte escrito no passado. Em todas as empresas que citei, da banca aos estivadores, as estruturas sindicais aceitaram, na década de 90, pré-reformas. Pensando talvez, como Keynes, que “no futuro estaremos todos mortos”. Ora, hoje estão vivos, com cortes nas reformas e a cuidar de filhos adultos como se de crianças se tratasse.
Só há duas hipóteses no horizonte. A TAP mantém-se pública e tem de ser bem gerida, e serve o transporte de pessoas e mercadorias de forma exemplar. Isso não pode estar dependente do Governo de turno – tem de haver um controlo público sobre a sua gestão, ético e irrepreensível; ou a TAP é privatizada e, na forma clássica ou não clássica, isso vai representar uma destruição da empresa ou do orçamento público, ou de ambos.
O memorando assinado por nove sindicatos aceita a privatização da TAP, mantendo os direitos laborais dos trabalhadores. Se não for cumprido, é mau; se for, é péssimo. Se o acordo entre os sindicatos e o Governo não for mantido, é mau e é porventura o mais provável, a empresa é privatizada, desmantelada, rotas canceladas, trabalhadores precarizados. Quem acredita num acordo sem força jurídica assinado por 10 anos por um Governo que deixa este ano funções?
Se for cumprido, ainda é pior. A TAP passa a ser privada, a sua medida não são rotas, serviços, condições laborais mas a alta remuneração dos seus accionistas, remuneração que depende dos cortes salariais. Daí o absurdo da proposta dos pilotos de pedirem 20% de acções – para manter o valor alto dessas acções, ou vão cortar nos seus salários ou nos dos seus colegas; ganham os pilotos, “queimam-se” os engenheiros? Ganham os dois e despedem-se os comissários de bordo? Quem vai pagar a factura da remuneração das acções? A única forma de uma TAP privada manter os direitos laborais e rotas não lucrativas é injectar quantidades massivas de dinheiro público numa empresa privada, é, no fundo, uma parceria público-privada, que se for paga é asfixiando fiscalmente o país ou destruindo o Estado social. Ou os dois em simultâneo. Numa metáfora firme: para que os pilotos tenham acções, o Estado despedirá médicos e professores. A história repete-se ad nauseam nesta gestão sem critério e imoral do orçamento público, e não é de hoje – temos décadas de erros acumulados. Era altura de não os repetir.
As sociedades não têm resolvido os seus desafios históricos com uma visão tacticista de curto prazo, que evita conflitos hoje para colher tempestades amanhã. Adiar problemas não os evita, agiganta-os. Um dia ensinou-me um piloto da TAP que um avião descola e aterra sempre… contra o vento.
Raquel Varela
Historiadora, Universidade Nova de Lisboa e IISH (Amesterdão)
Opinião PÚBLICO 03/01/2015