Ao longo de quase um século, a OIT tem desempenhado um papel determinante na defesa do trabalho. Com a crise dos últimos anos, muitos dos direitos dos trabalhadores foram postos em causa e há renovados combates a travar em prol do trabalho digno.
Em finais de 1918, o mundo dilacerado via-se ao espelho. Terminara a Grande Guerra, os escombros escondiam milhões de mortos e inválidos. A devastação atingira edifícios, fábricas, estradas. Chegava o século XX, um pouco atrasado no calendário do tempo. A guerra marca a transição de um mundo para o outro e tem origem em conflitos políticos, que têm por trás profundas desigualdades e a “questão social”, expressão que condensava toda a tensão ligada às difíceis condições de vida e de trabalho dos operários.
Conscientes das causas plurais da guerra, e que a paz só é possível se assente em justiça social, as potências beligerantes, sob pressão de algumas organizações sindicais europeias e norte-americanas, incluíram no Tratado de Paz a dimensão laboral. Daqui emerge a OIT, na esfera da Sociedade das Nações, em 1919.
A opção por uma organização tripartida – a grande originalidade da OIT – onde têm assento e poder decisório os governos, as associações sindicais e as associações patronais, e à qual compete a definição das regras laborais internacionais, é significativa da importância da escolha da via reformista, em detrimento da via revolucionária para resolução dos conflitos emergentes da “questão social”.
A criação de normas internacionais do trabalho, que se funda no diálogo “obrigatório” tripartido, é um dos principais fins da OIT desde a sua criação, definindo espaços de consenso acerca dos direitos dos trabalhadores, que vão sendo alargados aos países-membros à medida da sua evolução.
O tempo da OIT entre as guerras mundiais ficou marcado por uma abundante produção normativa, sobre temas já então clássicos como o trabalho infantil, a duração do trabalho ou o descanso semanal e ainda reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais. Ou as normas aplicáveis nas então colónias, proibindo o trabalho forçado e criando um estatuto de protecção dos “trabalhadores indígenas”. Assinale-se ainda o esforço técnico nas respostas à Grande Depressão.
Com o eclodir da II Guerra Mundial, a OIT muda-se para o Canadá, afirmando-se como instituição que deveria desempenhar um papel decisivo na reconstrução da ordem mundial após a guerra, contrariando a sua previsível extinção como associada à Sociedade das Nações.
Em Maio de 1944, foi aprovada a Declaração de Filadélfia, integrada na Constituição em 1946, documento que significou uma mudança de valores da OIT, fazendo uma ligação entre o desenvolvimento económico e social e o princípio dos direitos humanos básicos e determinando que os países subordinem as suas políticas económicas a um objectivo social.
A OIT manteve-se, com o seu tripartismo, fins e meios de actuação, integrando-se na estrutura da ONU como organização especializada. Nesse sentido, constitui uma ponte entre a SdN e a ONU. A ligação entre os vários documentos fundadores da nova ordem internacional é inextricável. A Carta das Nações Unidas, de 1945, segue o exemplo da Declaração de Filadélfia de 1944, retomando palavra “direitos”, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, adoptada em 1948, é tributária de ambas e continua a ser, hoje em dia, a expressão internacional mais abrangente e fundamental neste domínio.
As décadas do pós-guerra ficaram marcadas pela Guerra Fria, pela descolonização – em que a OIT teve um papel determinante, incluindo no caso português – e pela evolução estrutural da indústria e do emprego. A par da actividade normativa, sempre central, a Organização desenvolve a assistência técnica, assente numa visão integrada do desenvolvimento.
Em tempos mais recentes, marcados pela globalização e profundas alterações geopolíticas, sociais e económicas, o contributo da OIT para a consolidação dos sistemas democráticos tem sido essencial pela forma como vigorosamente afirma os valores da dignidade do trabalho e dos trabalhadores e do desenvolvimento económico-social sustentado à escala global.
A OIT e Portugal
A importância da OIT para o mundo laboral português, em particular para a consagração legal dos direitos dos trabalhadores, é inequívoca.
Fundador da OIT, Portugal viveu distintas fases do seu relacionamento com a instituição. Até 1933, houve uma proximidade que deu lugar a várias ratificações de convenções. De 1933 a 1956, viveu-se uma fase de distanciamento, com o regime fechado sobre si mesmo, divergindo claramente dos valores da OIT. Seguiram-se os últimos anos do Estado Novo, marcados por uma aproximação intensa, com muitas ratificações, num quadro de assumida procura de legitimação externa, em tempos do progressivo isolamento internacional devido à natureza do regime e à manutenção dos domínios coloniais.
Até 1974, apesar dos esforços, Portugal tinha uma baixa taxa de ratificação. No plano económico e social, as condições de vida e de trabalho eram muito limitadas, impedindo que se aderisse a normas tão básicas como as que impunham os 14 anos como idade mínima para o trabalho ou a licença de maternidade de 12 semanas. No plano político, embora tenham existido convenções ratificadas como as que proibiam o trabalho forçado, certo é que a natureza do regime impedia outras fundamentais, como a da liberdade sindical.
Desde Abril de 1974, tem havido um esforço contínuo de ratificação, sendo que o país aderiu a todas as convenções fundamentais e de governo e a muitas das convenções de natureza técnica.
Os desafios do futuro
Ao longo de quase, um século a OIT tem desempenhado um papel determinante na defesa do trabalho. Com a crise dos últimos anos, muitos dos direitos dos trabalhadores foram postos em causa, assistindo-se a uma precarização das relações laborais e uma diminuição significativa das condições de trabalho, em todo o mundo, o que vem trazer novas e acrescidas responsabilidades à OIT. Afinal, nem todas as conquistas eram irreversíveis e há renovados combates a travar em prol do trabalho digno.
Hoje, a OIT procura estudar e intervir no futuro do trabalho e reafirmar um novo mandato para si mesma, num “processo que orientará a acção da Organização ao longo do seu segundo centenário ao serviço da justiça social”, como refere o director-geral, Guy Ryder, no relatório apresentado em Junho à Conferência Internacional do Trabalho. É por tudo isto que a OIT se assume como uma organização em que o projecto do futuro não se conforma com o presente, deixando-nos a esperança que a dignidade humana é realizável.
Cristina Rodrigues
António Casimiro Ferreira