“Dêem-me uma pobre que não seja rica”
“O ‘pobrezinho’ era uma entidade que povoou a minha infância”, lembra António Alçada Baptista no primeiro volume da Peregrinação Interior, que inclui as Reflexões sobre Deus. Recordando o que se passava na década de 30 do século XX, regista o autor: “Em todas as ‘boas’ casas da minha meninice meiga e temente cultivavam-se os pobrezinhos, regavam-se com bocadinhos de pão com conduto, com pequenas moedas de cobre e cultivava-se sobretudo a sua pobreza”. Nada parecia faltar: “Havia a comida dos pobres, a esmola dos pobres, as visitas dos pobres e a sexta-feira, sobre ser dia aziago, era também o dia dos pobres”. Para o católico António Alçada Baptista, “as conversas sobre pobres entravam naquela zona de espiritualidade provinciana que abrangia as novenas, os lausperenes e as santas missões”.
As coisas para os pobres, explica, eram objectos no meio do caminho entre o uso e o lixo. “Estavam predeterminadas e correspondiam ainda à dificuldade de desapossamento das coisas, mesmo as que já não servem, que está na base da civilização em que vivemos”. Para o comprovar, relata o caso de uma alma distinta, aliás, devidamente nomeada, a quem a mulher pergunta o que fazer à lista telefónica antiga, no momento em que tinham acabado de entregar a nova edição. A resposta foi simples: dar a um pobre. Oferecer uma lista telefónica a um pobre é, de facto, uma boa piada, mas é, também, “uma caricatura exacta da dificuldade que tem o homem de encarar uma coisa que, sem merecer obviamente o caixote do lixo, na realidade não serve para nada”.
Conta Alçada Baptista que cada rico se dava “mesmo ao luxo de ter o ‘seu’ pobre” e que “os ricos deliravam com estes pobrezinhos assim cordatos, cumpridores, submissos e respeitadores”. A Peregrinação Interior, que teve a primeira edição em 1971, regista ainda que, nesse Portugal, que tantos pensavam longínquo, havia muitas espécies de pobres. “Quanto ao modo como adquiriam os meios de subsistência, havia os pedintes, os necessitados e os envergonhados”, cuja distinção o autor estabelece com rigor.
Sobre a singular relação dos ricos com os seus pobres, Alçada Baptista conta um eloquente episódio, identificando uma das protagonistas. Em certa ocasião, um grupo de senhoras reuniu-se, a pretexto da caridade cristã, para decidir a quem, de entre elas, seriam entregues as roupas e as mercearias para posterior entrega ao pobre que a cada uma correspondia. Tratava-se, nota Alçada Baptista, de uma espécie de leilão em que se licitava com as necessidades dos pobres.
“Dizia a pregoeira: ‘Mercearias, quem precisa de mercearias?’ Concorriam todas: ‘A minha precisa, a minha precisa!’ Seguia-se a avaliação, e a sua pobre era acusada pelas donas das outras: ‘A sua não, que tem uma filha que já ganha doze escudos [seis cêntimos, pelo dinheiro de agora]!’ A pobre foi preterida por outras que não ganhavam nada ou não tinham a sorte de ter filhas já tão bem colocadas na vida”.
Pouco depois, nova ronda: “Voz da pregoeira: ‘Roupas, quem precisa de roupas?’ Coro das senhoras: ‘A minha precisa, a minha precisa!’ Contestação sobre as necessidades da mesma pobre: ‘A sua não, que tem uma filha que já ganha doze escudos!’ Motivo considerado suficiente para anular mais esta atribuição”. Foi então que, remata António Alçada Baptista, a dona da pobre reclamou: “Está bem, mas então dêem-me uma pobre que não seja rica”.
Muitas décadas depois, eis que surgem idênticas objecções. “A maior parte dos pensionistas não são pobres e estão a fingir que são pobres”, dizia, na primeira página e na terceira coluna da página seis do Diário de Notícias de domingo passado, João César das Neves, que não é alguma das tias de António Alçada Baptista, nem a tia Gina, que “tocava órgão na paróquia, ensaiava os coros, era zeladora, não sei quê da cruzada eucarística, das conferências de S. Vicente de Paula”, nem a tia Celeste, que “escutava os ‘empenhos’ para o altíssimo onde ela tinha acesso franco e natural”. João César das Neves é economista e garante que “a maior parte” dos pensionistas são como a outra fingida, que quer passar por pobre quando tem uma filha que ganha seis cêntimos. Perante tal logro, apenas se pode lamentar que, em vez de serem pobres, os fingidos dos pensionistas – não alguns, nem muitos, mas, sublinhe-se, “a maior parte” – andem a descredibilizar os pobrezinhos.
Eduardo Jorge Madureira Lopes
Diário do Minho