1 O pouco que vou vendo sobre o andamento dos trabalhos da CPI sobre o Banif causa-me um efeito deprimente. Por ali vai desfilando parte da suposta elite financeira do país — ex ou actuais ministros das Finanças, banqueiros, administradores, governador do banco central — e todos eles, uns mais eloquentemente do que outros, têm apenas para dizer que nada de esclarecedor têm a dizer. Nada havia a fazer: parece que o Banif, como o BES, o BPN, o BPP, morreu de morte natural, nada podendo ser feito para o evitar. Parece que sim: parece que os bancos afinal são um péssimo negócio, condenados que estão por natureza a morrer, mais cedo ou mais tarde, transformando os depositantes em espoliados ou os contribuintes em sacrificados. E, depois, os senhores da elite, os que tinham directas responsabilidades enquanto o desastre se preparava ou ocorria, vão à sua vida como se nada fosse. Muitas vezes para recomeçarem em ofício idêntico ou semelhante onde a sua expertise é estranhamente apreciada e adequadamente paga.
Ilustração Hugo Pinto |
Pela CPI do Banif já passou o último presidente do Banco, Jorge Tomé, descontraído e de consciência perfeitamente tranquila: foi, diz, apanhado de surpresa pela resolução ordenada pelo Banco de Portugal, mas não explicou que alternativa era a sua, pelo menos que eu tivesse registado. Disse, sim, que até à notícia da TVI, o banco gozava de uma “situação financeira confortável” (isto é, tinha perdido apenas 80% dos depósitos nos dois meses e meio anteriores). Por lá passou também o seu colega da administração, o ex-MNE Luís Amado, o amigo da Guiné Equatorial, que aos costumes disse nada. Passou o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, que disse o mesmo de sempre: não tinha poderes, não teve tempo. Passou a ex-ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, que, diz ela, se fartou de trabalhar no assunto e deixou tudo pronto para uma decisão — só não percebi qual. Nenhum explicou por que razão chegou o Banif à situação a que chegou; porque não se interveio logo, quando, após a morte do seu fundador, a família se envolveu publicamente numa guerra interna pelo poder, que deve ter contribuído muito para a confiança no banco; porque se injectaram 1100 milhões de dinheiros públicos num banco que já se tinha percebido não ter futuro algum (eu, que não percebo nada de banca, escrevi-o, aqui, na hora); e o que se fez, de facto, desde então, para tentar reestruturar o banco ou tentar vendê-lo decentemente — enfim, qualquer coisa que não fosse oferecê-lo ao Santander por 150 milhões e deixar 3000 milhões de conta a pagar pelos contribuintes. Insinuando culpas uns aos outros, todos convergiram numa tábua de salvação comum que por ali apareceu a boiar: a responsabilidade final pelo desfecho foi da Direcção-Geral da Concorrência da UE, que chumbou todas as alternativas para impor a sua: a doação ao Santander, como parte de um mais vasto e sinuoso plano europeu para integrar toda a banca portuguesa no mercado ibérico — isto é, espanhol. Pode ser que o plano exista, pode ser que Bruxelas, farta das trapalhadas com a nossa banca, queira entregá-la a Espanha. Mas, se sabiam isso, porque entregaram o Banif no matadouro, como um cordeirinho? Pode Bruxelas impor a um país alegadamente soberano que ofereça um banco privado a um concorrente estrangeiro, ficando com os prejuízos para os seus contribuintes? Em que outro país se passou isso?
TANTA CONVERSA COM A “IDONEIDADE MORAL” REQUERIDA PARA SE SER BANQUEIRO E AFINAL TUDO ISTO É A FEIJÕES!
Já vimos este filme vezes demais: no BPN, no BPP, no BES, no BESA e agora no Banif. Junte-se-lhe a vergonhosa gestão da CGD ao longo dos anos, a acumular cinco exercícios consecutivos de prejuízos, também ela a dever dinheiro aos contribuintes, ao mesmo tempo que não consegue cobrar os empréstimos que andou a fazer no passado para financiar o assalto ao BCP. Em todos os casos, ninguém viu, ninguém sabia, ninguém podia prever, ninguém teve culpa, ninguém actuou de má fé, ninguém foi negligente, ninguém andou a emprestar montanhas de dinheiro a Ongoings e Easygoings a quem nenhum cidadão avisado emprestaria um euro. São coisas que acontecem — até aos melhores. Tanta conversa com a “idoneidade moral” requerida para se ser banqueiro e que tanto aflige o dr. Ricciardi, e afinal tudo isto é a feijões!
2 E depois vão para Davos, na Suíça, ou outros locais apropriados para discutir a salvação do mundo e combinarem entre si, nos bastidores, nada de essencial fazer quanto à união bancária e à harmonização fiscal da zona euro porque há que proteger o dumping fiscal para as empresas em vigor na Holanda ou na Irlanda ou o saque organizado aos parceiros europeus promovido pelo Governo do Luxemburgo, e também concordam em nada fazer de concertado em relação àsoffshores porque há que proteger a City de Londres e as suas paradisíacas ilhas fiscais — o mais parecido com o espírito comunitário que a Inglaterra aceita. Batem pesarosamente com a mão no peito de cada vez que o Consórcio Internacional de Jornalistas (que já deveria ter ganho o Nobel da Paz e da Decência) revela a criminalidade organizada de que muitos deles são cúmplices e, às vezes, beneficiários directos — eles, os seus bancos, as suas multinacionais, os seus países. Nada, juram-nos sempre, compungidos, pode ser feito individualmente por um só país ou mesmo por vários: teriam de ser todos e, como todos nunca se porão de acordo para acabar com as offshores, oh, que chatice, não há nada a fazer! Assim se governa o mundo.
O efeito que o sistema vigente tem sobre os povos governados é devastador. Como convencer os contribuintes comuns de que é preciso pagar cada vez mais impostos para sustentar o Estado social europeu, quando milhares de milhões dos mais ricos escapam todos os anos ao fisco desta maneira? E como convencer os beneficiários do Estado social de que as despesas não podem continuar a crescer acompanhando o envelhecimento populacional sob pena de a carga fiscal crescente matar a economia, quando eles vêem depois que não falta dinheiro, falta é conseguir cobrá-lo?
É verdade que se têm feito progressos, sobretudo a nível da UE, mas não só: os Estados Unidos, por exemplo, obrigaram a banca suíça a quebrar o sigilo bancário relativamente a cidadãos americanos que o Tesouro suspeitava de fugirem ao fisco. Mas aí funcionou a lei do mais forte: a banca suíça foi directamente ameaçada e cedeu. Mas já a inversa não funciona: os três Estados americanos que são paraísos fiscais não estão obrigados a revelar os seus beneficiários. A regra dominante (feita por quem tem poder para tal) é a de que aquilo que beneficia os outros e me prejudica a mim deve ser proibido; mas o contrário já não. No fundo, o que os “Panama Papers” nos contam é uma história que já conhecíamos desde 2008, quando o estoiro do Lehman Brothers arrastou o mundo para uma crise de uma crueldade social inaudita: o que mata o capitalismo mundial não são erros económicos nem políticos: é a ganância, a falta de escrúpulos e de valores éticos. Que ninguém quer vigiar a sério.