Os Panama Papers são uma oportunidade para os cidadãos exigirem decência na política e na finança.
Nos últimos dias, desde que rebentou o escândalo dos Panama Papers, jornais, jornalistas, comentadores, políticos, juristas e polícias têm sido cuidadosos a sublinhar que o facto de uma pessoa ou de uma empresa ser cliente da firma de advogados panamiana Mossack Fonseca não significa que tenha cometido um crime ou que esteja envolvida em algo ilegal, devendo por isso ser tratado com pinças e cuidadosa presunção de inocência o facto de o nome de alguém “aparecer” nos 11,5 milhões de documentos que compõem a fuga de informação. O cuidado compreende-se, pois fazer uma acusação de prática de crime sem provas pode ter consequências legais pesadas e os envolvidos, de uma forma geral, possuem recursos financeiros suficientes para lançar os processos que entenderem sobre quem entenderem.
Além destes alertas, têm também surgido na imprensa artigos explicando com grande didactismo que operações é que se podem fazer através de off-shores, quais são legais e quais são ilegais.
Posto isto, e sem pôr em causa que existam operações legais que podem ser (e são certamente) conduzidas a partir ou através de off-shores, devo dizer que continuo a não perceber por que razão uma pessoa ou uma empresa honesta coloca o seu dinheiro numa empresa escondida dos olhos de todos ou num banco secreto que se compromete a esconder a identidade dos titulares das suas contas aconteça o que acontecer.
Pode ser que haja quem queira simplesmente guardar o seu dinheiro num lugar discreto, para não dar nas vistas. O britânico Guardian dava o exemplo teórico de uma empresa que queira ir amealhando discretamente um pecúlio para poder renovar a sua linha de produção sem que os seus concorrentes se dêem conta e poder assim surpreendê-los com o lançamento súbito de uma nova linha de produtos. É uma história bonita. É igualmente possível imaginar um empresário muito rico que quer esconder a sua fortuna da sua tia Georgina porque sabe que ela o irá tentar convencer a doar o dinheiro aos pobrezinhos da Conferência de S. Vicente de Paulo e que, sabendo que a tia tem conhecimentos em todos os bancos e receando que estes não respeitem o sigilo bancário, prefere esconder o dinheiro numa daquelas ilhas do Canal da Mancha que o Reino Unido faz de conta que não são dela. E é possível imaginar pessoas que, apesar de terem o seu dinheiro em off-shores declare religiosamente todo esse património e todos os rendimentos que passem por essas contas e por essas empresas secretas. Pode ser. Tudo isto pode ser, mas é pouco provável. A verdade insofismável é que os off-shores existem para esconder dinheiro do fisco (para não pagar impostos) e para esconder dinheiro obtido ilegalmente. Existem para esconder património e rendimento (sejam de origem legal ou ilegal) e é sobre património e rendimentos que incidem os impostos. No mínimo, esses dinheiros deviam pagar imposto e não pagam, no máximo são provas de crimes que não são punidos. São estas as razões de ser dos off-shores e são estes os móbeis da imensa maioria das pessoas que aí escondem o seu dinheiro – sendo as excepções a empresa de que falava o Guardian e o sobrinho da D. Georgina.
E é por essa razão que os off-shores devem, pura e simplesmente, ser ilegalizados. São coios de ladrões, ainda que se possa admitir que alguma pessoa honesta lá tenha entrado por acidente. Não se trata de inverter o ónus da prova. Não se vai prender toda a gente que tem contas nos off-shores por esse simples motivo, correndo o risco de prender injustamente o sobrinho da D. Georgina que lá pôs o dinheiro mas nunca se esqueceu de o declarar, nem sequer daquela vez que foi eleito deputado. Os off-shores devem ser ilegalizados da mesma maneira que a venda de AK-47 é proibida nos centros comerciais, ainda que uma pessoa possa comprar uma metralhadora apenas para fins decorativos. Uma AK-47 pode ser usada com a mais cândida das intenções, mas a maior parte das pessoas não as usa para isso. É como os off-shores.
A respiga dos Panama Papers vai certamente levar uns quantos políticos a demitir-se (já começou), uns empresários e advogados a tribunal e talvez um ou outro à cadeia. Mas não chega. O problema dos off-shores não é albergarem um ou outro criminoso: é que a sua razão de ser é albergar criminosos. A sua simples existência é uma fonte maior de desigualdade social e de crimes. A sua existência garante que a igualdade dos cidadãos perante a lei não existe, que o estado de direito não existe. A sua existência só prova que aquilo a que temos chamado democracia é uma farsa.
Como há pessoas com lata para tudo, há quem já tenha vindo dizer que a fuga aos impostos é apenas uma consequência de haver impostos demasiado altos. Na realidade, é ao contrário: os impostos que pagamos só são demasiado altos porque há quem não os pague de todo.
Os Panama Papers são uma oportunidade para os cidadãos exigirem decência na política e na finança. Não desperdicemos esta oportunidade.
José Vítor Malheiros
Opinião Público 12.04.2016