A Valónia – comunidade francófona da Bélgica, com uma expressão demográfica semelhante à região Norte de Portugal – foi de súbito alcandorada aos píncaros da fama. Até à última hora, já nas vésperas da cerimónia de assinatura do acordo de comércio livre entre a Europa e o Canadá (Comprehensive Economic and Trade Agreement – CETA), a Valónia continuava a resistir heroicamente às pressões das autoridades europeias e do Governo belga, impedidos de subscrever o acordo sem o seu consentimento. Uma obstinação inabalável que levou os amantes da banda desenhada a comparar os valões aos habitantes da aldeia de Astérix, onde um punhado de indomáveis gauleses combateu sem tréguas as legiões imperiais de Júlio César. Ainda que os valões tenham por fim superado o impasse, perante os compromissos assumidos, os motivos da sua desconfiança continuam a merecer a mais séria reflexão.
A Flandres é a outra grande região belga, de língua flamenga e beneficiária de cerca de 90% das trocas comerciais entre a Bélgica e o Canadá. Enquanto a Flandres encara este acordo como uma boa oportunidade, a Valónia, que presentemente se debate com uma grave crise económica e social, receia que o CETA tenha impactos negativos sobre a produção agrícola, a proteção do ambiente, os direitos dos trabalhadores e, em geral, que possa acentuar a vulnerabilidade das suas instituições democráticas face aos interesses das multinacionais. Estas apreensões foram manifestadas há cerca de um ano, através de uma resolução aprovada pelo Parlamento Regional. Contudo, embora os trabalhos preparatórios do acordo se tenham iniciado há sete anos e a resolução do Parlamento Regional tenha sido aprovada no ano passado, as conversações com a Comissão Europeia só foram encetadas no princípio de outubro, ou seja, algumas semanas antes da data prevista para a assinatura do acordo! Tanta displicência só pode suscitar inquietação e desconfiança, e minar a credibilidade dos responsáveis políticos nacionais e europeus. Estes sentimentos, como bem sabemos, não são exclusivos dos valões nem se devem a qualquer singularidade belga. Pelo contrário, são largamente partilhados por muitos cidadãos europeus.
O acordo de comércio livre com o Canadá prevê que os eventuais conflitos que decorram da sua aplicação – entre os Estados e os investidores – sejam resolvidos por uma comissão de arbitragem, à margem dos tribunais. A experiência demonstra a necessidade de moderar o recurso a estes “instrumentos de resolução de conflitos” e a reforçar as garantias de independência de tais comissões. Por exemplo, o Governo alemão, depois do tremendo desastre de Fukushima, em 2011, ponderou os riscos e optou pelo abandono gradual da produção de energia nuclear. Contudo, a Alemanha ainda hoje se confronta com um processo movido pela Vattenfall, uma empresa que explora a gestão de centrais nucleares alemãs, que alega que essa decisão afeta os seus interesses e os lucros que esperava conseguir e por essas eventuais perdas futuras exige uma choruda indemnização. Multiplicam-se os casos em que grandes empresas multinacionais contestam decisões de proteção ambiental ou defesa dos recursos naturais aprovadas por governos democráticos, e conseguem obter, através destes modelos de arbitragem de conflitos, a condenação de Estados como a Alemanha, o Canadá ou o Equador ao pagamento de avultadas indemnizações. Steven Hill (The Wallonian Mouse That Roared – Social Europe, 31 de outubro de 2016) alerta para o perigo de que as grandes empresas multinacionais “se estejam a transformar em governos soberanos”, libertos de qualquer controlo democrático e protegidos pela opacidade e a ausência de supervisão destes procedimentos arbitrais. E sustenta que é tempo de estes acordos de comércio livre se preocuparem com a “regulação dos paraísos fiscais”, imporem normas de conduta aos investidores e incluírem referências éticas. Por fim, deixa um sério aviso: “os governos democráticos que não salvaguardem os seus interesses próprios e dos seus residentes contra o assédio permanente das corporações multinacionais, podem encontrar-se em breve encurralados pelas suas populações manipuladas por demagogos populistas”.
Pedro Carlos Bacelar de Vasconcelos
Opinião JN 03.11.2016
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