Os velhos e a história

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Não gosto da palavra idosos porque soa a condescendência. A linguagem fez-se para ser usada. Cunhamos vocabulário porque precisamos dele. É como o vernáculo. Corresponde às nossas necessidades de expressão e é assim que a língua evolui. Até porque o preconceito está muito mais no que não dizemos do que no que dizemos abertamente. Sim, velhos não são só os trapos, somos todos, lá chegaremos.
Os velhos são um laboratório vivo de análise histórica. Do passado e presente. Paul Connerton, conhecido antropólogo, diz que os corpos são o depósito da história. É neles que encontramos o mais inconsciente e subliminar dos vestígios históricos, o impossível de esconder. Tal como as ruínas, os detritos, são a matéria que atravessou o tempo e exibe em si essa passagem.
A população portuguesa é hoje, mais do que nunca, velha. Nas regiões do interior, é flagrante. Habitam lentamente a paisagem à espera do fim da espera. Mas afinal, o que nos dizem os nossos velhos sobre nós próprios e o período da história que atravessamos e atravessámos?
À minha porta, passa todos os dias uma senhora, velha. Veste-se de preto da cabeça aos pés, caminha devagar. Acena-me com um sorriso. Ouvi-a, um dia destes, dizer que nos seus ossos ninguém mexe. Isto devolveu-me a imagem muito forte dos entrevados, a quem a história, a ciência, a medicina, foi fazendo experiências. Com a melhor das intenções, é certo. Às vezes sem respeito pelo ser/corpo humano, só carne, também é certo. O meu avô dizia o mesmo. Não será por acaso.
A bonomia e a afabilidade
Em Portugal, é-lhes prolongada a vida, mas não lhes é permitido vivê-la com dignidade. São vítimas da analfabetização estrutural do Estado Novo e do subdesenvolvimento crónico do país. Estão “gastos” demais para ler, ver/ouvir televisão, passear, ouvir música, ir ao cinema, em suma, ser activos e usufruir do tempo, ao fim de uma vida inteira de trabalho. Têm a bonomia e a afabilidade de quem aprendeu a aceitar que são precisos muitos ciclos históricos para que as coisas mudem. Sublinho, estou a generalizar, a apontar traços que permitem configurar um perfil que, não sendo de todos, constitui uma “paisagem” significativa do país.
Aquilo que mais me impressiona nesta faixa etária e social são os seus corpos, os tais “depósitos” da história. Carecem quase todos de cuidados de fisioterapia permanentes. Os ossos, dizem os fisioterapeutas, reflectem comportamentos e mentalidades posturais. São o lugar onde se recalca o mais inconsciente de nós e da história. Os ossos são arquétipos. E eles ali estão: cansados, usados, velhos. A história usou-os. Isto diz muito de um país. Não lhes chamar velhos, diz mais ainda porque a linguagem é o preto no branco do que pensamos. De que serve não lhes chamar velhos e deixá-los morrer sozinhos em suas casas?
Somos nós que somos inconscientes e ignorantes: achamos que nunca lá vamos chegar. Quanto tempo e esforço custa a sabedoria? Chamemos-lhes velhos, por respeito. E cuidemos deles.

Sandra Guerreiro Dias

Historiadora da cultura e doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
P3 PUBLICO 25/11/2014