Há dias, em conversa com um amigo, falávamos da tendência compulsiva do primeiro-ministro para dizer coisas inoportunas e aparentemente sem sentido. Explicava-me esse meu amigo, conhecedor e apoiante convicto de Passos Coelho, que, de facto, “o Pedro é assim. É um tipo invulgar, a que não estamos habituados, que se está nas tintas para o que os outros pensam sobre ele. Se acredita numa coisa, di-la e que se lixe o timing”.
Vem isto a propósito da prédica desta semana em que Passos Coelho, no habitual tom salvífico, comparava o país que recebeu em 2011 com o que entrega em 2015. Dizia o primeiro-ministro que “o objetivo que temos é o de vencer a doença, não é o de perguntar se as pessoas durante esse processo têm febre ou têm dor, ou se gostam do sabor do xarope ou se o medicamento que tomam lhes faz um bocado mal ao estômago; quer dizer, se os efeitos secundários de todo o processo por que se passa valem ou não valem a cura”.
Confirmámos, se dúvidas tivéssemos, que para Passos Coelho os fins justificam os meios. Isto é, que os milhares de empregos destruídos nos últimos quatro anos não passam de pequena azia natural resultante do xarope, ou que a dor dos mais de 400 mil forçados a emigrar é um estado febril consequência da dose medicamentosa, ou que o facto de quase metade dos portugueses enfrentar risco de pobreza antes de realizadas as transferências sociais seja uma ligeira moinha, efeito secundário do antibiótico. Isto para não falar do assalto às pensões e aos salários ou do enorme aumento de impostos, da degradação de serviços públicos essenciais como o Serviço Nacional de Saúde, a justiça ou a escola pública, que nos deixaram a viver pior, muito pior. Mas isso são, certamente, enxaquecas ligeiras que, como diria o outro, “o país aguenta”. Em resumo, a tese é a de que se lixem as pessoas, desde que os números batam certo. E o pior é que não batem.
O rating da República que estava no lixo antes da chegada do “Messias”, no lixo ficou. A dívida pública, nuns lastimáveis 93,4% do PIB em 2010, está hoje, depois da terapêutica, nos 128,9% do produto. E o défice, alfa e ómega de toda a narrativa, não é líquido, de acordo com todas as instituições internacionais, que cumpra o objetivo de ficar abaixo dos 3%. Mas há as taxas de juro em mínimos históricos, dizem-nos em jeito de medalha no currículo. Pois, mas convém explicar que, mesmo aí, o mérito não é do médico mas do “canhão Draghi” e da intervenção do Banco Central Europeu.
Regresso à conversa com o meu amigo porque, ao contrário dele, não sou crente nem discípulo. Mas, por uma vez, dou razão a Pedro Passos Coelho e ao título que autorizou para a sua hagiografia eleitoral: “Somos o que escolhemos ser.” O primeiro-ministro é, de facto, aquilo que escolheu ser. Submisso perante os credores e o diretório europeu comandado pela senhora Merkel, insensível à realidade e à vida concreta das pessoas desprezando valores elementares de dignidade humana, obstinado em continuar a cumprir o Excel herdado de Vítor Gaspar e com a imagem de aluno bem-comportado, empenhado na missão de punir o povo irresponsável que durante décadas viveu acima daquilo que podia. Em síntese, Passos Coelho escolheu ser o nosso Dr. Kevorkian, condenando-nos ao suicídio assistido.
Parafraseando um ex-primeiro-ministro do século passado, voltámos ao tempo em que as pessoas não passam de números. Porque, para os fanáticos, a realidade não importa. O que interessa é estarem convencidos de que têm razão.
Nuno Saraiva
Opinião DN 17.05.2015