A aldeia era pequenina. A dois passos corriam pequenas ribeiras que, crescendo ao longo de vales mais profundos, se tornavam violentas no inverno, alimentando a bacia da margem esquerda do Douro. Estendida numa encosta virada a sul, era bafejada pelo sol, que a rondava do nascer ao ocaso. Mas era desabrigada do cieiro, vento frio da meseta que percorria as neves de Guadarrama, da Gata e outras serras. E ainda da Estrela, quando o vento virava a oeste e descia pelas tapadas frias do Calvário. Quando o vento vinha de noroeste ouvia-se o silvo do comboio a despedir-se de Vila Franca das Naves, a vinte km.
No ponto mais alto da cumeada ficava o talefe, onde o Tio Manuel nos levava e desafiava a estender a vista por terras de Espanha: – meninos, daqui conseguimos avistar os altos Pirinéus de França. Não se enganava de todo. Mais tarde descobrimos que se tratava da serra de Penha de França, um pouco adiante de Cidade Rodrigo.
Nesta aldeia havia três pátios rurais parecidos com os pátios das quintas que, passado o portão da entrada, continham tudo o que era necessário a uma casa agrícola: acesso à casa principal do lavrador; o lagar; as cortes dos animais da lavoura, as pocilgas, galinheiros e coelheiras; os cabanais da palha, do feno, da lenha e das alfaias agrícolas e outros anexos, formando um espaço de geometria mais ou menos perfeita.
Um destes pátios continha duas casas de habitação com dois pisos, uma bem antiga como se via pelas pedras gastas das escadas de acesso à varanda. Habitava-a uma velhinha solteira, protegida pela restante família a viver paredes meias.
Esta velhinha, a senhora Ana, já muito dobrada, tinha aquele corpinho seco e rijo da gente criada com o trabalho da terra e do que ela dava. Conheciam-se os seus percursos mas pouco mais. Quase não precisava de falar. Apenas a salva e alguns comentários para os cães que lhe ladravam, principalmente quando ia carregada com os feixes da lenha ou de comida para os animais. Nem os pés se viam, assim carregada. Parecia um monte de coisas a movimentar-se por si próprio. Nunca se via na pequenina igreja, no terço ou na missa, talvez por não ouvir o sino ou porque ninguém a chamava. Não seria menos cristã por isso. Já nem se lembraria das orações, mas substituía a prática religiosa pelas suas rotinas: ceifar a forragem, recolher tudo para casa, dar de comer a galinhas e coelhos, levar uma cabrinha ao pasto e recolhê-la ao fim do dia, arrancar a erva junto às videiras do casal, sachar o milho, separar as sementes, ir à fonte e pouco mais. Não sabíamos para onde dirigia os seus pensamentos, mas sabíamos da sua vida penosa e dura, afastada de qualquer vício ou pecado. Já nem precisaria de pensar na finalidade do que fazia. Eram as estações do ano, a clareza dos dias e a escuridão das noites que lhe talhavam as tarefas. Pensaria no seu fim próximo? Talvez não. Metida consigo própria, apenas em casa, quando recolhida, lhe vinham à mente algumas queixas. Talvez algumas memórias de quando a sua vida não era tão rotineira e isolada.
– Ninguém me visita – exclamava por vezes quando o inverno ou a doença a obrigavam a permanecer em casa.
– Estou aqui eu, ti’Ana – respondia-lhe o sobrinho Francisco José, já a deitar corpo de jovem naquela fase em que os movimentos são desajeitados e, neste caso, as próprias ideias. Ficava sentido com aqueles desabafos da tia, ele que era o moço dos recados duma casa para a outra.
– Um dia destes trago-lhe uma visita, minha tia – dizia-lhe naquele seu jeito de falar com boca de sorriso.
Aproximava-se o Natal no inverno frio neste planalto beirão onde, durante semanas, se forma uma manta de nevoeiro denso agarrado à terra, provocando o sincelo, camada de gelo que tudo cobre, formando bonitas estalactites nos telhados e nas árvores, mas tornando a vida da lavoura bem mais difícil. Nesses dias os rebanhos não podem sair das cortes e os lavradores vêem-se aflitos para os alimentar. Forma-se uma espécie de inversão das camadas do frio. Quem subir à Guarda descobrirá um sol radioso e, da torre de menagem, avistará aquele mar branco que a rodeia, a que alguns chamam o “mar da Guarda”.
Foi neste ambiente que o Francisco José, nos seus volteios, foi congeminando a ilusão de fazer uma surpresa à tia.
Num dia em que todos estavam fora de casa, menos a burra, transporte de todas as cargas, decidiu experimentar. Colocou o animal em frente da escada que dava acesso à varanda, preso por uma corda comprida, subiu os degraus e, lá do cimo, puxou com força tentando que a burra subisse. Depois de longo esforço, apenas conseguiu que o animal colocasse as patas da frente no primeiro degrau. Tentou mais vezes, mas nada de progressos.
Teimoso, deitava-se com aquela ideia. Na véspera do Natal foi visto pelo pai a picar a pedra da parede da varanda, já mesmo à entrada da porta da tia Ana.
– Que vais fazer, Francisco?
– Vou colocar este espigão com argola e arranjar maneira de segurar uma corda ao longo da parede das escadas para a tia se agarrar.
– Deixa-te disso, rapaz. A tua tia segura-se à parede – respondeu.
A ideia era outra. No dia seguinte não foi à missa. Desculpou-se com qualquer tarefa e ficou. Estendeu a corda d’ incrir – corda de sete a dez metros que servia para segurar em cima das albardas os feixes de tudo o que a terra produzia – fê-la passar pela argola e ficou com as duas pontas ao fundo da escada.
Foi buscar a burra, alinhou-a novamente, prendeu uma das pontas da corda ao cabresto, colocou um feixe de feno a meio da escada de pedra para servir de isco e ficou com a outra ponta da corda bem agarrada, colocando-se atrás da besta. Com a corda na mão direita e um pau na mão esquerda começou o que, pensou, seria a derradeira tentativa de fazer o animal subir à varanda.
– Arre burra! Vamos lá, estupor; não foste a bem, vais mal, nem que te leve às costas! – exclamava, puxando a corda com toda a força e batendo-lhe com o pau no traseiro. Mas a besta insistia em fazer força para trás e vencia. O rapaz, agora com bons modos, meteu-se por baixo dela, encostou-lhe o ombro, levantou-lhe uma pata dianteira e empurrou com força pousando-lhe a pata e logo a outra nos primeiros degraus, ficando a burranca na posição de cabriola. Mas, sentindo-se ela novamente firme, logo saiu dos degraus.
– Ah burra teimosa, … não hás de levar a melhor!
Foi buscar um braçado de palha de centeio, poisou-o atrás, chegou-lhe o fogo e voltou a pegar na corda. Levantou um punhado de palha a arder, aproximou-a do amojo da burra, puxou a corda com toda a força e até se assusta com a mudança: sentindo o calor, o animal começa a zurrar, tacteia os primeiros degraus e logo os vai galgando como se já estivesse treinada, procurando rapidamente abrigo no cimo da varanda.
– Ah, burra danada! Subiste ou não subiste! E foi-lhe buscar o feno, servindo-lho ali mesmo frente à porta donde saía uma língua de fumo vinda da lareira da Ti’Ana.
O rapaz entrou em casa e conduziu a tia, que vinha resmungando e dizendo:
– Está quedo, Francisco.
Mas ele trouxe-a até à porta da rústica cozinha e apontou-lhe a burra:
– Minha tia, aqui tem uma visita. Já não me atrevo a trazer-lhe a vaca, mas ao menos tem a companhia de uma figura do presépio e eu, como seu rei mago, faço de segunda figura!
Enquanto a burra ia comendo pachorrentamente o feno, sentaram-se os dois à lareira. O Francisco aqueceu uma panelinha de ferro com delicioso cacau que ambos beberam, a tia resmungando, que tais mimos não eram para ela.
Na casa ao lado, no presépio, o Menino sorria por achar graça à teimosia
Coimbra, Dezembro de 2014
José Castelo Monteiro da Gama
Associado APRe! nº5