Por que é que ontem nos pudemos mobilizar colectivamente em torno de melhorias concretas e hoje isso nos parece um sonho irrepetível?
Há dias, numa reunião pública sobre saúde, alguém lembrava os extraordinários sucessos alcançados no domínio da saúde materno-infantil no Portugal pós-25 de Abril e recordava com entusiasmo o trabalho das equipas que tinham andado a percorrer o país após a revolução, a criar consultas de saúde materno-infantil nos centros de saúde, a formar o pessoal de saúde, a lançar campanhas de informação, e sublinhava os progressos conseguidos logo nos primeiros anos, que transformaram Portugal num exemplo mundial.
O tema em discussão era a literacia de saúde e a campanha pela saúde materno-infantil nos anos 70 era dada como exemplo do que é possível fazer, mesmo com meios escassos, quando existe uma estratégia e uma vontade. Muitos dos presentes tinham idade para se recordar ou para terem participado nestas acções e ninguém pareceu discordar da mensagem da intervenção, mas alguém que falou a seguir lembrou com realismo que “isso foi logo a seguir à Revolução, uma altura em que se podia fazer tudo porque toda a gente estava mobilizada e todos queríamos melhorar as coisas e acreditávamos que tudo era possível.” Hoje, isso seria impossível.
Por que é que houve uma altura onde pensámos que tudo era possível e porque é que hoje tudo nos parece tão inalcançável? Por que é que houve uma altura em que ousámos construir tantas coisas novas e hoje tudo o que não seja a continuação do passado nos parece demasiado arriscado? Por que é que ontem nos parecia evidente que era preciso correr o risco de nos enganarmos para inventar e construir um mundo melhor e hoje esse risco parece excessivo mesmo quando sentimos que a vida que vivemos é vergonhosa e inaceitável? Por que é que ontem nos pudemos mobilizar colectivamente em torno de melhorias concretas para todos e hoje isso nos parece um sonho irrepetível?
Durante os últimos anos repetiram-nos à exaustão que a austeridade era a única solução para um problema que tínhamos provocado por termos sido preguiçosos e perdulários. Todos sabemos hoje que o diagnóstico e a terapêutica eram falsos e que apenas serviram para empobrecer os pobres, enriquecer os ricos, dar mais poder aos poderosos, reduzir a nossa autonomia e a democracia. Mas, apesar disso, um número impressionante de pessoas continua a repetir o mesmo falso mantra da austeridade e irá votar nos mesmos partidos que a defenderam e aplicaram. Conheço algumas destas pessoas. Algumas aceitam que outro caminho podia ser melhor, mas têm medo de experimentar. Habituaram-se a ser servos nesta plutocracia do PSD e do CDS e receiam mudar para algo novo. Desaprenderam não só de sonhar mas de desejar. Receiam e recalcam os seus próprios desejos. Há um provérbio, abjecto como tantos provérbios, que diz que é melhor o mau conhecido que o bom por conhecer. Não há forma mais rastejante de ser conservador. É assim que os poderes ilegítimos que nos governam, os mercados financeiros, as máfias dos partidos, a finança da fuga ao fisco impõem o seu jugo. É melhor não mudar porque se pode mudar para pior. É a estratégia do medo. E funciona. O que espanta é como é possível que alguém queira dar este exemplo aos seus filhos, um exemplo de servidão, de obediência canina sem direito a levantar os olhos do chão.
Margaret Thatcher gostava de repetir que “there is no alternative”. Não havia alternativa à liberalização, à destruição dos serviços públicos, à redução dos direitos laborais, à privatização dos bens públicos, à desregulação dos mercados. O mantra neoliberal que hoje cobre todas as acções dos governos ocidentais, desde os da direita assumida até aos que ainda se intitulam socialistas. A frase ficou conhecida pelo acrónimo TINA. TINA representa o contrário de democracia, o contrário da escolha popular, o contrário da soberania do povo, o contrário de eleições onde se referendam programas políticos. Não há alternativa. As escolhas impõem-se por razões naturais e, para Thatcher e para os seus sicários, só se pode escolher entre ser escravo ou o caos. E muita gente prefere ser escravo. Se eles dizem que não há alternativa, para quê escolher?
O referendo escocês foi outra destas vitórias. Uma vitória do medo, uma derrota da autodeterminação. Os escoceses escolheram não ter de escolher, escolheram a opção que lhes permitia escolher o mínimo possível, continuar tanto quanto possível como até aqui. Naturalmente que havia muitas boas razões para votar “Não”, mas as mais fortes, as que determinaram o resultado, foram o receio da mudança. “It’s not worth the risk” dizia um slogan do “Não” à independência.
É a democracia que está em crise, não o sistema ou o regime mas a própria ideia da democracia. Escolher e assumir o risco da escolha tem neste momento má imprensa. A ideia da moda é que o melhor é não fazer ondas, não mudar nada. Seguir o rebanho. Nem na UE, nem no euro, nem do Reino Unido, nem em lado nenhum, porque qualquer coisa nova pode ser pior. A direita conseguiu impor o medo da rotura, da construção de algo novo, o medo de tentar, o medo de escolher. Mas sabemos que para sair deste pântano vamos ter de tentar.
José Vítor Malheiros
Opinião PÚBLICO, 23 de Setembro de 2014