É cíclico. Quando o verão aquece mais do que o previsto, reacende-se a época dos fogos. E a Lei de Murphy, que estabelece que quando algo pode correr mal, correrá certamente mal e no pior momento possível, manifesta-se inexorável. Por mais que se reforcem os meios de combate aos incêndios, esta calamidade repetir-se-á enquanto não houver prevenção, nomeadamente uma política de ordenamento do território de longo prazo, integradora de vários atores (governo central, municípios e proprietários de terrenos). E não adianta dizer que a culpa é dos média. Não é. Resulta de anos e anos a empurrar o problema para a frente até rebentar em várias frentes.
É difícil perceber, e aceitar, a vaga de fogos descontrolados que se multiplicam no país, com particular incidência na Madeira. No início de julho, quando visitou a Ilha, o presidente da República recebeu uma carta aberta, alertando para a urgência do reordenamento da floresta. Entre os signatários, estava o geógrafo madeirense e ex-vereador do Ambiente da Câmara do Funchal Raimundo Quintal que, esta semana, em declarações ao Observador, não se cansou de reiterar a falta de cultura de prevenção de que padece o país. O problema está identificado. Há muito tempo. Falta, porém, resolvê-lo. E é pelo sistema político que tudo deverá começar. A atual situação resulta de décadas de desprezo pela floresta. Governo e autarquias têm de criar uma ação política concertada que convença os proprietários de extensos quilómetros de mata abandonada a também se envolverem na respetiva preservação e limpeza. Num tempo que deve ser de tomada de decisões, convém que se perceba que esta não é altura para a guerrilha partidária. Todos os partidos, sem exceção, têm aqui responsabilidades. Foram muitos anos fazendo pouco. E isso deveria ter um custo político, se ajustássemos devidamente as contas com quem geriu o país central e localmente.
Noutra dimensão, há que perspetivar também o comportamento e a responsabilidade de todos e cada um dos cidadãos. A prevenção começa sempre na esfera do indivíduo. Cada um de nós é ator, fiscalizador e vítima. Não deitar lixo na floresta, não deixar garrafas que podem gerar ignições, não atirar beatas acesas ou mal apagadas pelo vidro do carro são atitudes simples mas decisivas, que se aprendem e sinalizam na escola, na família, no trabalho ou no café da esquina. Ninguém está dispensado deste esforço coletivo. Cumprir e vigiar é tarefa de todos, sob pena de esta onda de destruição se repetir ano após ano.
Ora, se hoje nos sentimos horrorizados com a dimensão dos incêndios e experimentamos uma grande solidariedade em relação às populações afetadas e aos incansáveis bombeiros, tal deve-se a um discurso jornalístico que nos situa no centro daquilo que importa reter. Por estes dias, algumas contas censórias das redes sociais levantaram a possibilidade de se travar a cobertura mediática em curso. Num regime democrático, não é possível, nem desejável, esconder o que está a acontecer. Os média devem noticiar os incêndios. Não há aqui outra qualquer discussão possível. Numa situação de tamanha gravidade como a atual, essa mediatização constrói-se por continuidade e deve estar no topo dos alinhamentos e nas aberturas dos jornais. Em grande destaque.
Um outro debate será o modo como se processa esse trabalho jornalístico. No terreno, o repórter deve ser um mediador isento, que procura um relato preciso daquilo que está acontecer. Para isso, não necessitará de entrevistar bombeiros (nesta altura, eles devem ter espaço para outros combates), nem deverá explorar depoimentos de populares em desespero. Não é um jornalismo esbaforido nos diretos e à procura da dor alheia no terreno que nos faz falta. Também não estão ao serviço de uma audiência mais esclarecida opções editoriais que repetem até à exaustão peças sem qualquer informação nova ou imagens vergadas apenas ao sensacionalismo. Precisamos de um jornalismo rigoroso, contextualizador dos factos e (muito) escrutinador daquilo que (não) tem sido feito. Para que as visões dantescas que os média têm refletido ao longo de toda a semana não tenham mais réplica.
Felisbela Lopes
Professora Associada com Agregação da Universidade do Minho