Numa entrevista de Hannah Arendt à televisão alemã, em 1964, a pensadora conta que logo após a subida de Hitler ao poder foi detida durante oito dias pela polícia política por colaborar, clandestinamente, na denúncia internacional da campanha antijudaica do III Reich. Os olhos da entrevistada iluminaram-se quando recordou, com ternura, a bondade e honestidade do inspetor que a interrogou, educado para ser polícia e não torcionário. Foi essa honestidade que explica a sua rápida libertação. Esta pequena história manifesta a grandeza moral e intelectual de Hannah Arendt. Ela foi capaz de perceber a singularidade humana, mesmo debaixo do uniforme da odiosa Gestapo. Infelizmente, ao longo desta crise europeia, cada vez mais enrodilhada (recessão económica, desunião monetária, assimetria credores-devedores, refugiados, separatismos), muitos responsáveis políticos dos países do diretório foram incapazes de olhar para europeus dos “países periféricos” como pessoas singulares. Jornais, como o alemão Bild, encheram as suas primeiras páginas com estereótipos contra a preguiça, desleixo e falta de seriedade dos PIIGS. A austeridade foi justificada como um castigo. Um amigo contou-me que foi repreendido, na Alemanha, por um transeunte, porque um português não deveria estar a olhar para uma montra de automóveis de luxo! O escândalo da VW, cada vez mais colossal e repugnante, não nos deve fazer reagir da mesma maneira. Que a talvez maior fraude tecnológica de sempre fale alemão não pode servir para ofender os alemães como pessoas singulares. Mas talvez possa contribuir para romper as máscaras de preconceito hostil que dividem os europeus, no momento em que estes mais precisariam de trabalhar lado a lado – como os homens e mulheres singulares e únicos que são – pela casa comum europeia.
Viriato Seromenho-Marques
Opinião DN 02.10.2015