Portugal está a ser submetido, há vários anos, a uma experiência de engenharia social. Usando de instrumentos político-institucionais e económicos, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) formaram uma Troika que, aproveitando uma imensa crise financeira internacional e as fragilidades estruturais de economias como a portuguesa, se juntaram aos representantes nacionais do neoliberalismo austeritário para impor, por muito tempo, uma economia estagnada, um desemprego acima dos 10%, uma emigração de mais de meio milhão de pessoas, salários esmagados, protecções sociais e laborais ínfimas, um Estado demasiado empobrecido para garantir serviços públicos, e uma dívida insustentável. Foram bastante bem sucedidos e não dão a experiência por terminada.
Os poderes que protagonizam esta experiência não são necessariamente loucos (por muito que se vislumbre neles laivos de sociopatia) nem incompetentes (por muito que a incerteza associada a qualquer experiência possa ser fraca desculpa). E o fanatismo com que insistem na aplicação dos seus modelos pode ser sobretudo sinal de um poder absoluto que não é politicamente partilhado nem intelectual ou socialmente contestado – pelo menos não com a força que seria necessária.
A cegueira que lhes é atribuída ao observar as consequências das suas experiências parte do princípio de que dominantes e dominados, vítimas e carrascos da austeridade, partilham os mesmos objectivos e lutam pelos mesmos interesses. Nada podia ser mais falso. E é justamente porque estamos perante profundas assimetrias de poder e interesses altamente divergentes que é tempo de percebermos que a cegueira que nos parece insensata tem atrás de si promotores altamente racionais e que é o nosso próprio direito à cegueira perante isto que deve ter limites.
Os neoliberais austeritários, externos e domésticos, não dão mostras de se afastarem minimamente dos seus objectivos. Para eles, Portugal precisa das políticas e regras que melhor servem o sistema financeiro internacional e os bancos do centro europeu; de ter um exército de mão-de-obra barata para uma economia nacional de serviços e emigrantes exploráveis, mesmo os mais qualificados; de manter o garrote de uma dívida pública que a crise fez explodir e que canaliza capitais para os credores financeiros, não para o bem-estar social. A engenharia social da desigualdade precisa tanto de riqueza como de pobreza. Constrói polaridades, não justiça.
O inédito processo político de sanções, aberto pela Comissão Europeia, a Portugal e Espanha, ficará para a história, apesar do compreensível alívio que a ausência de uma multa suscitou, como mais um episódio da gestão da arbitrariedade do poderoso neoliberalismo europeu, que mantém toda a flexibilidade táctica sem perder o seu fito estratégico. Neste caso, o poder soberano decidiu direccionar o polegar estendido, sob os olhares ansiosos da multidão, para a não aplicação de multas, mas não deixou de avisar que, depois de os súbditos folgarem nas férias, poderá optar por suspender a atribuição de fundos estruturais. Tudo dependerá da execução orçamental e da avaliação (política) do próximo Orçamento do Estado, o de 2017.
Por agora, o governo português e as forças partidárias que o apoiam estão a responder a esta estratégia de medo, destinada a provocar conformação ao rumo político da austeridade, sem ceder a chantagens. Ameaçando até, e bem, com o recurso a tribunais. Mas a folga para melhorar efectivamente as condições de vida da maioria dos portugueses é muitíssimo reduzida, independentemente da vontade política, no quadro das regras europeias existentes e de uma dívida que não seja reestruturada em juros, montantes e prazos. Isto não significa que o próximo orçamento não deva traduzir as melhores escolhas – claro que deve – mas que a arquitectura da União Europeia neoliberal, mais ou menos punitiva, está formatada para impor a Portugal desemprego, salários baixos, emigração e, quando muito, estagnação económica.
Nada disto é novidade. Não o é para os que criticam estas políticas há décadas de forma consequente, como não o é para os que as promovem. Estes últimos são useiros e vezeiros na criação de instrumentos para lançar a dúvida (e com ela a expectativa) sobre a sua capacidade de crítica e de mudança. Fazem-no, em particular, por via de intervenções cirúrgicas na comunicação social, muitas vezes apoiadas em relatórios que assumem erros no desenho e/ou execução das políticas, sejam esses estudos elaborados pelas instituições envolvidas ou por organismos independentes.
Desde há muito que o FMI começou a aplicar os seus planos de ajustamento estrutural em diferentes partes do planeta, da América Latina a África e à Europa de Leste. E, desde cedo, habituou-se, uma vez aplicado o programa, a assumir alguns erros. Mas depois fica tudo na mesma. A partir de 2001 criou até uma estrutura independente para avaliar a aplicação dos programas, o Independent Evaluation Office (IEO), autor do mais recente relatório sobre a actuação do Fundo em Portugal e na Grécia. Publicado a 25 de Julho, o documento é tão devastador como previsivelmente inconsequente.
A aplicação do plano de austeridade a Portugal e à Grécia teve especificidades na história do FMI, desde logo por serem países integrados numa moeda única e, portanto, incapazes de responder aos efeitos do ajustamento com uma desvalorização cambial. Mas muitas das críticas à actuação do FMI que surgem no relatório repetem as de outros documentos, internos ou independentes, até mesmo sobre Portugal. Apenas a título de exemplo, quem não se lembra de o FMI ter revelado, por via de Olivier Blanchard no «World Economic Outlook (WEO)» do início de Outubro de 2012, que havia problemas com os «multiplicadores» nas políticas de ajustamento, o que ia ter impactos mais recessivos do que o previsto, apesar de tantos economistas terem alertado repetidamente para isso mesmo? Quem não se lembra de, em meados de Dezembro de 2013, o FMI afirmar, na décima avaliação do Memorando de Entendimento, que iria continuar a impor reduções salariais e outras «flexibilizações» do mercado do trabalho, apesar de até alguns patrões chamarem já a atenção para que o problema essencial era a falta de procura numa sociedade em processo de desvalorização interna? Quem não se lembra de, no final de Junho de 2014, quando o programa foi formalmente encerrado, a própria Christine Lagarde ter reconhecido que o Fundo teria feito melhor em renegociar a dívida portuguesa? No entanto, a proposta continua a ser quase demonizada aos olhos da Troika e da direita austeritária. Quem não se lembra, já em meados de Dezembro de 2015, de os peritos do mesmo FMI terem reiterados vários erros cometidos, em particular a não reestruturação da dívida, mas nada disso ter tido quaisquer consequências, inclusive para efeitos de processo de sanções?
Na verdade, tal como a abertura de um processo de sanções por parte da Comissão Europeia se destina a manter viva a angústia da punição e o desejo de obedecer para a evitar, a publicação de relatórios de admissão de erros por parte do FMI ou das suas identidades independentes serve para acordar nos austerizados a esperança de correcção de uma trajectória política de pobreza e desigualdades. Se a resposta à primeira implica coragem e até insubmissão, a resposta ao segundo exige que deixemos de nos surpreender com o previsível e passemos a forçar mudanças reais.
Sandra Monteiro
Le Monde Diplomatic
04.08.2016