O RETRATO está no último Eurobarómetro sobre corrupção (de Março 2013): 90% dos portugueses encaram a corrupção como um problema grave do país (a média europeia é de 76%). Da Europa dos 15, só Grécia, Itália e Espanha (com 99%, 97% e 95%, respectivamente) apresentam uma percepção da corrupção mais elevada que a nossa.
Não é de suborno que estamos a falar, embora o pagamento de luvas seja bem conhecido das autoridades judiciais, mas daquela corrupção que se desenvolve de uma forma legal, continuada no tempo, através de redes clientelares e da colusão de interesses públicos e privados, e que tem custos incalculáveis, quer ao nível da legitimidade das instituições, quer no que concerne a competitividade da economia.
Os dados falam por si. Embora a democracia não esteja em risco de desconsolidação, a sua legitimidade tem sido seriamente questionada. Os níveis de insatisfação ascendem a dois terços da população e o apoio à democracia enquanto sistema de governo capaz de solucionar os problemas dos cidadãos e proporcionar-lhes qualidade de vida desceu de 81% em 1999 para apenas 56% em 2011.
As implicações na economia são também desastrosas. Os dados do Global Competitiveness Index 2014-15 mostram que Portugal apresenta, por um lado, baixos níveis de eficiência legislativa e regulatória e, por outro, altos níveis de favoritismo e conluio recorrente em decisões governamentais e de má despesa pública em vários negócios do Estado, tais como aquisições sem mérito e parcerias público-privadas ruinosas. Escusado dizer que as duas dimensões estão interligadas e acarretam repercussões negativas ao nível da confiança nos políticos e, claro, nos níveis de endividamento do Estado.
A corrupção que estamos a viver – e que se manifesta com maior ou menor vigor na maioria das democracias da OCDE – é uma corrupção associada aos processos de decisão e ao papel do Estado na economia. Como alerta Johan Lambsdorff (2006), a corrupção e a distorção das políticas públicas são duas faces da mesma moeda: para ganhar vantagem para si ou para terceiros, um decisor vende uma interpretação hábil ou arbitrária de lacunas, erros, omissões na legislação, com prejuízo do interesse público.
Contudo, o problema é bem mais grave e complexo. Não se trata apenas de distorcer regras em proveito próprio. Estamos perante uma nova forma de fazer política, que resulta do enfraquecimento do Estado face a um mercado cada vez mais aguerrido, da degeneração dos padrões de ética na vida pública e da emergência de uma nova estirpe de políticos de negócios. A questão não reside apenas na obtenção de rendas indevidas que resultam de leis poucos claras mas na distorção, a jusante, dos processos legislativos e regulatórios. Trata-se de uma corrupção legal (Kaufmann e Vicente, 2011) ou institucional (Thompson 1995, Lessig 2013, Light 2013, Newhouse 2014), em que os mecanismos de decisão são capturados por interesses económicos com o intuito de criar rendas através da manipulação das políticas públicas e da regulação do mercado para benefício próprio, passando os custos e riscos morais desses negócios para o contribuinte. Este tipo de corrupção recorre a várias estratégias de influência e incentivos perversos: do lóbi às portas giratórias, dos financiamentos políticos às juris-consultorias. O direito torna-se instrumental à corrupção. Não é por isso despropositada a conclusão de um estudo de Tanzi e Davoodi (2001) que sugere uma correlação directa entre os níveis de corrupção numa sociedade e o número de matrículas universitárias em direito. As sociedades corruptas, dizem os autores, precisam de mais advogados.
Ao operar num contexto de aparente legalidade, esta corrupção permanece fora do radar dos mecanismos de fiscalização do Estado e dificilmente será sancionada pela justiça. Resolvê-la torna-se uma questão política, mas mesmo aí a punição eleitoral destas práticas é ainda mais inconsequente devido à assimetria de informação entre o decisor e o eleitor. Numa fase inicial, os cidadãos vão aceitando estas decisões com normalidade, ou porque desconhecem os custos inerentes, ou porque lhes importa menos o mérito ou as consequências intergeracionais que os benefícios a curto prazo que daí advêm. Mais tarde, impotentes perante a impunidade, limitam–se a condenar em abstracto o “sistema”, “os partidos”, “os políticos”, desmaterializando a sua cumplicidade. Como refere um académico norte-americano, o suborno é uma forma de corrupção mais primária, em que a relação entre os objectivos e as consequências é directa e facilmente condenável; esta corrupção institucional é uma forma mais complexa e dissimulada, que se confunde com a “normalidade” da política e em que a relação entre objectivos e impactos é relativa e difusa, e por isso de mais difícil condenação social.
Portugal enfrenta um problema institucional sério, que requer bem mais que os tradicionais pacotes anticorrupção ou os discursos moralistas para “educar” o “bom cidadão”. É urgente resgatar o Estado da economia e revitalizar as fundações éticas da democracia.