Sobre a tirania

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A tirania ameaça as nossas democracias através de dois mecanismos contraditórios que operam em conjunto — a política da inevitabilidade e a política da eternidade

Num texto velho de 22 anos, mas de uma atualidade aguda, Umberto Eco deixava um aviso: o fascismo não regressará com as mesmas vestes. Não deveríamos esperar marchas militarizadas, nem botas cardadas, nem polícias políticas como no passado. Os governos totalitários que assolaram a Europa do século XX dificilmente reaparecerão com as mesmas características em contextos históricos diferentes. No entanto, para o escritor italiano, era possível identificar um conjunto de traços do “fascismo eterno”, o que, num ensaio incontornável, apelidou de Ur-Fascismo.

Sem citar Eco, o historiador norte-americano Timothy Snyder, num pequeno livro — “On Tyranny — twenty lessons from the twentieth century” —, elabora sobre a mesma hipótese. O exercício é notável: um texto pedagógico, de grande lucidez, que cruza leituras da história com alertas sobre os dias de Trump (que nunca nomeia). Misto de lições sobre a forma como o passado se projeta no presente e manual de instruções para lidar com as novas formas de tirania, a reflexão de Snyder é atravessada por um ensinamento: temos de preservar a memória dos horrores do passado para proteger a democracia.

Não se pense que Snyder assume um regresso às tiranias do século XX. Pelo contrário, a preocupação é identificar os traços novos do totalitarismo, sem esquecer o passado. O livro abre, aliás, com uma asserção certeira: “A história não se repete, mas ensina.” E se há ensinamentos a reter — da forma como as instituições liberais soçobram com facilidade à tirania, à importância dos exemplos de coragem moral, passando pela obrigação de preservar uma separação inviolável entre vida pública e privada —, o que torna o exercício interessante é a revelação de como os mecanismos do passado assumem novos contornos, nomeadamente em face das transformações do espaço público.

O texto é atravessado por uma hipótese: a tirania ameaça as nossas democracias através de dois mecanismos contraditórios que operam em conjunto — a política da inevitabilidade e a política da eternidade. Enquanto a primeira criou um pensamento hegemónico, que garantiu que os totalitarismos eram memórias distantes e o curso da história apontava inexoravelmente para a democracia liberal; a segunda remete para um passado mitificado, alicerçado numa ideia falsa de uniformidade nacional. O perigo que enfrentamos está na forma como, sem sentido da história, passámos da política da inevitabilidade (uma visão acrítica e pueril da democracia liberal) para a política da eternidade (um tipo de oligarquia fascista, marcada pelo cinismo).

Entre muitas instruções para enfrentar as novas tiranias, Snyder aconselha que, contra a opressão das redes sociais e do ciclo mediático organizado em torno de uma sucessão de escândalos, leiamos livros. Fica aqui este conselho com um alcance fundamental.

Pedro Adão e Silva
Expresso, Opinião 05.08.2017