Vejo por cá quem alinhe com Trump. Uns às claras, com elogios à “coragem” de rasgar com o statu quo e defender a pátria e “os seus”; outros de forma mais velada, fazendo ver os “erros” dos antecessores, criticando os “excessos” na comparação com Hitler ou sublinhando os “perigos” dos imigrantes e refugiados
Tenho de confessar que vai para três semanas que a minha cabeça anda praticamente em modo monotema. Deito-me com as últimas notícias sobre Trump, tenho pesadelos com um certo ser cor de laranja a espumar da boca num púlpito, acordo com mais notícias sobre Trump, passo o dia a ler as histórias e comentários sobre mais uma das suas sucessivas decisões imorais e/ou inconstitucionais ou sobre mais um dos seus vis ataques, seja aos media de referência, a um juiz que ousou fazer valer a lei ou aos muçulmanos (terroristas ou gente de bem, que para ele é tudo a mesma coisa). Espanto-me. Indigno-me. Horrorizo-me. Tento não ceder à tentação de normalizar a minha repulsa, de acomodar a indignação, habituar-me à ideia. Afinal o ser humano habitua-se a tudo, não é verdade?
Por mais que me espante, tenho de gastar o meu latim a explicar a diferença entre legitimidade democrática de uma eleição (neste caso beliscada pelo facto de ter perdido o voto popular, coisa que Trump ainda não conseguiu digerir) e a ilegitimidade democrática dos atos do homem eleito. Nem uma eleição é um banho purificador do candidato, nem garante o direito ao eleito de fazer o que lhe apetece, mesmo que em campanha tenha dito estas e outras alarvidades. Na tomada de posse, o Presidente dos Estados Unidos jura obediência à Constituição e tem de a cumprir, ao mesmo tempo que se submete aos famosos checks and balances, os freios e contrapesos que Montesquieu tão bem urdiu para obstar a prepotências.
E, por mais que me espante, também vejo por cá – até entre os meus amigos e conhecidos – quem alinhe com ele. Uns às claras, com elogios à “coragem” de rasgar com o statu quo e defender a pátria e “os seus”; outros de forma mais velada, fazendo ver os “erros” dos antecessores, criticando os “excessos” na comparação com Hitler ou sublinhando os “perigos” dos imigrantes e refugiados. E não, não são os desempregados fora do sistema e ignorantes que simpatizam com Trump em Portugal. São também juristas, são católicos (que certamente não praticam os valores cristãos), são uma certa direita conservadora que partilha o temor pelos “invasores” e que gosta dessa ideia de nos voltarmos para dentro.
Onésimo Teotónio de Almeida, pensador e ensaísta sobre a identidade nacional, residente nos EUA, não acha inconcebível: até podíamos ver um Trump eleito por cá. “Não se recorda de um concurso na televisão portuguesa em que os portugueses elegeram Salazar como o melhor português de sempre? Em Portugal costumamos ser sempre bons seguidores de modas. Por isso…”, argumenta em publicada nesta edição da VISÃO.
Já lá vão três semanas, mas ainda estou em choque. Não, não podemos normalizar o horror de ver a nação mais poderosa do mundo entregue a um bully xenófobo, racista e misógino, a um narcisista impreparado, ao rei da propaganda de discurso básico e simplista. A um homem a quem escasseiam os mais elementares valores humanistas, que desconhece as mais elementares regras democráticas, que passa por cima dos mais elementares princípios constitucionais. Trump é tudo isto, e quiçá pior ainda, e nós a ver, com minucioso detalhe, este tenebroso reality show de um pequeno ditador em construção.
Lembro-me do fantástico texto de Eugène Ionesco, Rhinocéros, e do horror com que o protagonista Bérenger assiste a todos os humanos à sua volta a transformarem-se em rinocerontes brutais. “Não vou capitular!” grita epicamente o improvável herói (um alcoólico desmazelado) no fim da peça, ele que é o último resistente. Nos dias de hoje, vale a pena regressar a Ionesco e à sua alegoria aos tempos do nazismo. Porque esta é também a altura em que temos de escolher: afinal, somos Homens ou rinocerontes?