TENHO UM SONHO
Com a América, parece-nos sempre que todos os sonhos são realizáveis. The American dream. Não tenho a certeza de ser bem verdade. Obra de um magnífico marketing; ou porque a galinha da vizinha é sempre melhor que a minha. A realidade lá para as terras onde o Sol se põe, nem sempre é cor-de-rosa: as bolsas de pobreza extrema, de exploração, de desigualdade, os contrastes violentos entre as grandes metrópoles e os estados no centro do grande continente, têm de nos fazer pensar. Detroit hoje em dia. É compreensível? Dispenso as explicações de ordem financeira. Como nos deve fazer meditar a narrativa pintada de forma gloriosa que os norte-americanos fazem da sua própria história. Não vou discutir os factos históricos per se, mas gloriosas são todas as histórias. O combate do homem por melhores condições de vida, contra a adversidade, pelo progresso e pela igualdade. É sempre gloriosa, estejamos na Europa, na Ásia, na África ou na América. Em todas as latitudes a história faz-nos sofrer até às lágrimas, causa-nos a mais profunda alegria, mexe com os nossos sentimentos e afectividades. Espantamo-nos por sabermos um pouco mais da história americana do que era expectável. Talvez se trate de uma bela publicidade e propaganda. Vale a pena lamentarmos isso? A história deixou de ser o que era? Impor a sua história, a forma como ela é contada apenas demonstra que há quem não brinque em serviço. Divulgar a sua história como os americanos o fazem – de acordo com um modelo holiodesco – é com certeza uma forma de imporem as soluções sociais em que acreditam. Aquilo que temos de fazer é separar o trigo do joio e perceber onde pára a realidade e começa a propaganda. Por exemplo, o caso da marcha liderada por Martin Luther King. I have a dream, I have a dream. Luther King teve uma nação atrás dele e essa realidade é empolgante. Pedia muito? Aos olhos de uma sociedade habituada às desigualdades raciais, sim, pedia muito. Era utópico? Não, não era. A utopia cresce na razão directa da inércia e do conformismo. A utopia existe para quem não quer perder privilégios. Admito que talvez existam aqui algumas nuances mas muito poucas. Faz-nos bem, acorda as nossas consciências olhar agora para a América, recuar cinquenta anos e afirmar bem alto que temos um sonho. Um sonho que recusa reduções nos salários mínimos; um sonho que passa por ter um governo que esteja genuinamente interessado em defender os portugueses no presente e no futuro; um sonho que projecta uma sociedade que não exclui os seniores; um sonho que ponha fim à iniquidade que invade o nosso dia-a-dia; um sonho que nos devolva a dignidade que temos perdido nas mãos do FMI, do BCE e da EU; um sonho que se opõe liminarmente à política de empobrecimento. Tenho um sonho, uma palavra de ordem fantástica, grande, unificadora. Ou a outra palavra de ordem pouco lembrada, mas muito usada na grande marcha. The time is now. Ou seja, chegou a altura. De facto, chegou a altura de nos levantarmos, pôr de parte o que nos possa dividir e entorpecer. Nós não temos todo o tempo do mundo. O que vem aí, que os jornais vão anunciando, é verdadeiramente catastrófico e humilhante. Não estamos a caminhar para o futuro; estamos a voltar ao passado em marcha acelerada. É o cerne do regime democrático que está em causa. A continuar assim, num ápice, estaremos a dizer, que tínhamos um sonho. Ora, tenho um sonho, sim, quero gozá-lo e quero partilhá-lo com outros portugueses sobretudo com os mais jovens, desfrutando da sua alegria e confiança.
Luísa Cabral