A primeira vez que vi a Maria do Rosário Gama foi na SIC, em Outubro de 2012, e confesso que fiquei impressionado com a generosidade, a energia e a convicção com que defendia a sua causa: a criação de uma associação, APRe! (e o nome era todo um programa), onde os reformados e pensionistas se pudessem defender dos ataques aos seus direitos por parte de um governo que, com o pretexto da Troika, decidira ser fraco com os fortes e forte com os fracos.
Talvez porque estava a preparar um filme sobre o encontro de duas solidões – uma mulher de setenta e tal anos e um jovem de 18, que se viam, ambos, empurrados para fora da sociedade, relegados para a solidão e o esquecimento – dois seres incómodos para filhos e pais, numa palavra, descartáveis -, talvez por isso, criei logo ali uma relação de simpatia com a Maria do Rosário Gama, sem saber que, dois anos depois, nos iríamos encontrar e eu próprio iria tornar-me sócio da APRe!
O filme, “Os gatos não têm vertigens”, estreara-se em Setembro de 2014, e, poucos dias depois, recebi uma chamada da Maria do Rosário propondo-se organizar em Lisboa, em Coimbra e no Porto, idas ao cinema dos membros da APRe! e propondo-me que, uns dias depois, eu fosse falar com os seus associados sobre o que me motivara a fazer o filme e ouvir os relatos das suas experiências e os comentários à história que eu inventei . Em Coimbra e em Lisboa a sala estava cheia (a sessão no Porto acabou por não se realizar) e foi um prazer encontrar-me com gente da minha idade, que havia sido sensível ao que vira no ecrã: uma mulher que, de repente, fica viúva e descobre um dia que um jovem desamparado estava a dormir no seu terraço, e que, em vez de chamar a polícia, decidia adoptá-lo.
Mal eu sabia também que hoje estaria aqui a falar de um livro extraordinário cujo título faz eco ao do meu filme: se é verdade que os gatos não têm vertigens, também é verdade é que os sonhos não têm rugas.
O livro assinado pela Maria do Rosário Gama, por António Betânio de Almeida e Ângela Dias da
Silva é um assombro! Útil, didáctico, positivo, é um repositório riquíssimo de experiências pessoais, um desfile de testemunhos de todas as classes sociais, mas sobretudo da classe média, cada um reagindo (conforme os favores ou desfavores da fortuna ou o seu próprio temperamento e situação), ao assomo da idade, ao desconforto ou, pelo contrário, às oportunidades da reforma, à humilhação da dependência e do desprezo dos outros, ao sentimento horrível de perda da utilidade social e profissional, de ser um peso para os seus, pessoas que se vão abaixo, outras que resistem, denunciam e combatem, um rosário de experiências, umas terríveis outras edificantes, uma galeria invulgar de personagens, cujas vidas poderiam inspirar outros tantos filmes.
Dividido em 8 capítulos, feitos de testemunhos avulsos, seguidos de uma reflexão fundamentada e honesta dos autores – porque nunca cede à demagogia -, vale a pena enumerar o tema de cada um: “Sou Velho?” é o primeiro, uma pergunta terrível que um dia qualquer de nós já fez ou fará ao espelho ou perante o olhar dos outros, “Passar à Reforma”, que pode ser um trauma ou um alívio, a Carta de Princípios da ONU para os idosos, tantas vezes esquecida, e, por fim, a importância da “Participação”, da “Assistência”, da “Realização Pessoal” e da “Dignidade”.
Além disso, para enriquecer este livro precioso, temos direito a um Prefácio magnífico de José Pacheco Pereira, que não hesita em lembrar-nos que o anterior Governo e muita comunicação social lançaram uma “fronda contra os mais velhos”, atiçaram “jovens contra velhos”, “de uma forma – diz ele – que nunca se tinha visto na experiência ocidental”, e lembra para exemplo a não apagar da memória, a forma ignóbil como um deputado do PSD, Carlos Peixoto, se referiu aos idosos como sendo a “peste grisalha”, cuja existência, dizia ele, havia “contaminado” nem mais nem menos do que “a nossa Pátria”!
Resisto à tentação de citar algumas das passagens dos muitos testemunhos de que o livro está cheio, bem como a enumerar alguns dados referenciados pelos autores – tantos eles são! -, uns revoltantes, outros dignos de serem exaltados, tão rica é a sucessão de descobertas e ensinamentos que fazemos a cada novo capítulo.
Mas quero aproveitar os minutos que me restam, e a Presença, que nos honra, do senhor Presidente da República, para falar de uma coisa que considero de fundamental importância no exemplo da APRe!, e de que este livro é apenas (e não é pouco!) o valioso compêndio. Refiro-me às iniciativas cidadãs, sem as quais a democracia se confunde perigosamente com o mero jogo partidário, se esgota com a eleição regular que o povo é suposto fazer dos seus representantes, e que, por não termos sabido ponderar o preço da abdicação de parte da nossa soberania para Bruxelas, e por termos descansado comodamente na delegação do poder nos nossos governantes e deputados, sem termos usado os instrumentos de escrutínio que a Constituição nos concede, está cada vez mais desacreditada.
Essa decepção – o sentimento de que o Estado foi capturado pelos interesses – traz consigo um perigoso desencanto, uma alienação e uma desconfiança nas virtudes insubstituíveis da democracia representativa. Para os mais velhos, os da minha geração, que esperaram tudo do derrube da ditadura, e para os mais novos que nasceram com a democracia e a deram como um direito adquirido, esta desilusão é perigosa. Convém lembrar a toda a hora que a democracia e o Estado de direito é um bem que se conquista e se preserva todos os dias, e que é, na maioria dos países, uma experiência recente da Europa do pós-Guerra, frágil, precária, que facilmente desperta a nostalgia e o apelo a formas de governo autoritárias!
Se hoje, ao contrário do que aconteceu com “os Pais da Europa” e com os grandes líderes políticos que emergiram da II Guerra, os países carecem de políticos que ajam no respeito da delegação do voto que lhes é concedida e se esquecem muitas vezes de que são mandatados para defender o interesse público, é porque os políticos da velha geração, de que faziam parte Churchill, De Gaulle, Jean Monet, Willy Brandt, Schumann, Filipe Gonzalez, Olof Palme, Mário Soares Mitterand e tantos outros, sabiam o preço e o valor da paz, da democracia e da liberdade. Porque, para eles, a paz, a democracia e a liberdade foram uma conquista, e porque os povos, que saíram de uma guerra sangrenta e brutal, se bateram também eles, arduamente e com duros sacrifícios, pela conquista dos seus direitos.
O que falta à democracia, hoje, sobretudo em Portugal, é o escrutínio dos cidadãos, das suas organizações, associações, movimentos cívicos, que dêem voz e expressão ao protesto justo e legítimo, em nome de uma colectividade, seja ela nacional ou local, de classe, etária ou profissional. Do mesmo modo que há hoje um défice de confiança na isenção e na independência da Justiça e da Comunicação social, dois pilares do Estado de direito, que têm por dever garantir a confiança dos cidadãos no funcionamento equilibrado do regime democrático.
Por isso é que organizações como a APRe! devem ser seguidas e imitadas, quer através de sólidas e duradouras instituições de solidariedade, quer através de movimentos cívicos organizados à volta de questões vitais para a nossa soberania e o nosso futuro como Nação europeia, livre e independente. Hoje, questões como a exploração do petróleo no Algarve ou o TTIP – o Tratado Transatlântico – negociado num secretismo perigoso, que tem passado ao lado das nossas preocupações e cujo desfecho pode pôr em causa tudo o que a Europa do pós-Guerra conquistou e que nos garantiu uma paz duradoura -, merecem a nossa atenção e vigilância. Antes que o protesto anárquico, facilmente manipulável, tome conta das ruas, que o desânimo e a descrença tomem conta dos espíritos e que os apelos à ordem acordem velhos fantasmas, são as organizações responsáveis de cidadãos que nos podem devolver a confiança em nós e nas instituições. Numa palavra: a confiança na democracia.
António-Pedro Vasconcelos