Um novo conto de crianças

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É um conto de crianças mas não aquele em que terá pensado Passos Coelho. Com efeito, talvez pudesse ser edificante para os mais novos dar-lhes a conhecer, com sentido pedagógico e algum humor, as peripécias das negociações entre o Governo grego e as instâncias europeias.

Como em tantas histórias infantis, não faltam aqui episódios quase irreais, com figuras representando mundos diferentes ou até opostos, num bailado sem fim à vista mas onde é já possível discernir uma lição moral. Talvez os miúdos fiquem a saber como, na Europa, um pigmeu enfrenta um gigante, através de truques e manhas que farão sorrir as crianças mas que os adultos fingem levar a sério para não perderem a face…

Imaginemos então que o pigmeu da história, refém de um passado tristíssimo e nada exemplar, decide rebelar-se contra o duro castigo que lhe fora imposto pelo gigante para corrigir as suas faltas e as suas dívidas de gastador impenitente. A luta é claramente desigual e o pigmeu corre o risco de ver agravada a sua pena. Mas, bem vistas as coisas, pouco terá a perder depois da severidade punitiva com que o trataram.

Fora-lhe prometido pelo gigante – neste caso representado por uma hidra mitológica de três cabeças: a troika – que a sua obediência às ordens recebidas seria recompensada com um prémio: o perdão e o regresso ao mundo da virtude e da prosperidade.

Ora, na triste realidade do dia a dia, o pigmeu foi definhando e perdendo as poucas forças que lhe restavam. De nada lhe servia já a submissão, a não ser para cavar mais fundo a sua sepultura.

O pigmeu decide então fazer das fraquezas forças, até porque se apercebe de que o gigante estará ele próprio enfraquecido e deixa à mostra os seus pés de barro: já não é um bloco de granito, mas um conjunto de peças que ameaçam desagregar-se, com algumas delas procurando ganhar vida própria e escapar à lei do mais forte.

Por outras palavras, o gigante já não se mostra soberano e unido como antigamente; a fé e o medo que inspiravam a sua doutrina sofrem o efeito da erosão e do conflito dos interesses entre parceiros. A solidez do dogma abre brechas e cresce o número dos que questionam o seu carácter sagrado. Pois é nessas brechas que o pigmeu se introduz para conquistar aliados e desapertar o nó górdio que o asfixia – e ameaça também sufocar outros, mais expostos à intimidade com o gigante. Poderá servir-lhes como peão de brega e areia na engrenagem.

Claro que o pigmeu usará da manha e dos subterfúgios como é próprio dos pigmeus em luta com os gigantes – ou a que David recorreu contra Golias. Começa por esticar a corda e simular uma arrogância negocial que, provocado o primeiro abanão, vai depois temperar com brandura e sensatez. Mais do que isso: vai apresentar-se como agente providencial de um objectivo construtivo, uma nova ordem mais consentânea com os interesses comuns e menos manietada por uma doutrina que a todos prejudica.

Evidentemente, o pigmeu não será capaz de disfarçar os óbvios contrasensos nas alianças e amizades que fez – por vezes nada recomendáveis – ou na coerência dos argumentos que apresenta. E, sobretudo, é muito provável que o gigante, acossado no reduto das suas certezas indiscutíveis, acabe por esmagar as intoleráveis veleidades do pigmeu.

Só que o preço dessa vitória poderia ser fatal para alguns fundamentos do reino governado pelo gigante, incluindo o elemento simbólico do poder exercido por ele: a moeda usada em comum pelo gigante, o pigmeu e os outros – os submissos ou os inspirados pela ousadia do segundo.

A partir do momento em que o pigmeu rebelde foi acolhido com alívio e simpatia por alguns pares destacados desse reino em convulsão, o destino do gigante ficou em situação difícil de gerir. Como escrevia o antigo ministro dos Estrangeiros alemão, Josch- ka Fischer, «o último capítulo da crise do euro irá deixar a política de austeridade da Alemanha em frangalhos – a não ser que Merkel queira correr o enorme risco de deixar o euro fracassar».

Acrescente-se: mesmo que o BCE a ajude a salvar as aparências e Merkel lhe fique a dever um favor, de que servirão as supostas audácias de Draghi para impedir o colapso do euro?

P. S. – Ser ‘bom aluno’ não chega para convencer os professores. Pelo contrário, o último relatório do FMI acusa o Governo português de sacrificar a austeridade ao eleitoralismo. Depois da emigração em massa de trabalhadores qualificados, do aumento do desemprego jovem e do agravamento do risco de pobreza em Portugal (segundo os mais recentes dados do INE), o esquizofrénico FMI – que simultaneamente advoga a austeridade e a considera responsável pela crise das economias deprimidas – vem propor mais despedimentos e mais cortes nos salários e no apoio aos desempregados, como caminho a seguir para o crescimento… Razão têm os gregos para não quererem mais conversas com a troika!

Vicente Jorge Silva
Opinião SOL 09.02.2015