“Um país amigo do idoso é aquele que o ouve”

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Brasileiro descendente de portugueses, foi investigador e professor na Universidade de Oxford e dirigiu entre 1995 e 2008 o programa global da Organização Mundial de Saúde (OMS). Alexandre Kalache, médico epidemiologista de 70 anos especialista em questões de envelhecimento, em entrevista ao Expresso

“Solidariedade é a palavra que melhor rima com longevidade” é um dos lemas defendidos por Alexandre Kalache, médico epidemiologista de 70 anos especialista em questões de envelhecimento. Brasileiro descendente de portugueses, foi investigador e professor na Universidade de Oxford e dirigiu entre 1995 e 2008 o programa global da Organização Mundial de saúde (OMS). O mentor das Cidades Age-Friendly e consultor da HelpAge Internacional afirmou em entrevista telefónica ao Expresso que o preconceito em relação aos idosos é global e não é novo. Otimista, advertindo os idosos a gritar bem alto, como ele, pelos seus direitos e a bater-se por um envelhecimento ativo e participativo. “Somos a geração dos movimentos dos anos 60, da pílula, virámos a mesa. Como é que vou ser um velhinho como o meu pai ou avô?”, questiona.

A esperança média de vida não para de aumentar. É uma conquista ou um problema?
O facto de as pessoas estarem a viver mais é uma conquista civilizacional. A nível mundial, entre 2000 e 2050 vamos dobrar o número de pessoas idosas. O que sabemos de Portugal é que será um dos três países do mundo mais envelhecidos em 2050. O que carateriza a evolução da longevidade em Portugal é que era um dos países mais jovens entre 1970 e 75. Pouco antes de entrar para a União Europeia era o país mais jovem da altura.

E vamos de mal a pior, já que temos a segunda taxa de natalidade mais da Europa…
Não quero dizer que estejam mal. Portugal avançou muito. Se estivesse como há 50 anos, diriam que estavam mal. Viver mais é maravilhoso. Prefere morrer cedo? Claro que não. O desafio é saber que políticas são necessárias, sustentáveis e realistas face ao nível económico do país. Estamos diante de uma crise prolongada que afetou e continua a afetar muito o vosso país. Não é o envelhecimento que é um problema, é a falta de políticas.

Sem dinheiro é difícil encontrar soluções…
Então o problema é a falta de dinheiro. Se as pessoas idosas pudessem contribuir mais para a sociedade, certamente haveria maior retorno de dinheiro. Se o idoso tem mais energia, mais saúde e pode continuar a contribuir, tem direito a participar da sociedade. Em vez de ser um peso morto, ele será pelo contrário um fator de desenvolvimento económico.

Defende políticas de envelhecimento ativo. Em países onde o mercado de emprego em queda, essa concorrência não será um fator de tensão entre novos e velhos?
Pode ser, se as políticas adotadas não forem feitas com sensibilidade. A natureza do trabalho para idosos e jovens não é a mesma. Um mecânico de automóveis que parou de aprender há 20 anos, quando lhe bastava saber de mecânica e não aprendeu eletrónica, já perdeu o emprego. O que aconteceu é não houve investimento para que esse trabalhador fosse produtivo. Produtividade hoje depende essencialmente de duas coisas: saúde e conhecimento. Na saúde dos portugueses melhoraram tanto que a expetativa de vida deu um salto tal que está mais alta do que a média europeia. Se ao mesmo tempo tivesse investido mais nos idosos, fazendo com que os profissionais liberais ou operários tivessem reciclado ou adquirido mais conhecimentos, seriam todos mais produtivos, gerando mais emprego, riqueza e mais respostas para a crise económica. Um investimento para todo o grupo de adultos, e não só para o idoso.

Numa entrevista, referiu que os brasileiros são preconceituosos em relação aos mais velhos. Em Portugal, tivemos um governando que chamou aos reformados peste grisalha. Como se combate essa discriminação?
Não é só o brasileiro que é preconceituoso. Eu sou um privilegiado porque o meu trabalho é internacional, só na OMS estive 13 anos, e hoje, como consultor, a cada mês estou num continente diferente. Todos os países, todas as sociedades são preconceituosas em relação aos idosos. Não é de hoje. Cícero há dois mil anos, já analisava o preconceito na sociedade romana. O que está acontecendo de diferente? Antigamente os idosos não passavam de 4 a 5% da população e eram sociedades mais conservadoras, de família. Havia respeito pelos mais velhos porque tinham um poder económico e morriam cedo. Não tinham anos e anos de potencial, dependência de familiares, não desenvolviam doenças de senilidade, como o Alzheimer, morriam antes…

E tinham as mulheres da família para cuidarem deles.
Não chegavam a ser uma carga tão grande como hoje. E, claro, havia outro suporte familiar. As famílias tinham 12 filhos, comum em Portugal. Sei disso porque o meu avô, que nasceu no Porto, tinha 13 irmãos e irmãs. O problema do idoso era, por isso, fácil de resolver, pois quando ficavam doentes a medicina não tinha muito a fazer. E se não morriam rápido, tinham sempre uma mulher ou muitas na família para cuidarem deles, até porque a maioria não ingressara no mundo do trabalho remunerado. Hoje, tudo mudou. A família é menor, as mulheres estão no trabalho, os idosos chegam aos 70, 80, 90 ou mais anos. Então temos de reformular a forma de pensar as nossas sociedades.

E qual é o rumo?
Ontem, 15 de junho, foi o dia internacional da prevenção dos maus-tratos, abandono e abuso de idosos. Hoje em Coimbra, na conferência para pessoas interessadas nestas questões, perguntei: quantos de vocês sabem que ontem foi o dia da prevenção do abuso contra idosos? Só cinco pessoas em 200 levantaram o braço. Ou seja, não as pessoas não estão informadas ou sensibilizadas para o problema dos idosos, e não falo só de abuso físico mas psicológico. São pessoas com direito a participar integralmente na sociedade.

Segundo dados do ‘Censos Sénior 2016’, Portugal triplicou o número de idosos a viver sozinhos, isolados e vulneráveis. São mais de 43 mil. Como se atenua o problema da solidão?
O setor público vai ter de estimular mais a criação de centros de dia e os cuidados primários. É preciso identificar os problemas, inclusive de depressão e solidão, através de programas intergeracionais. Existe um potencial enorme a nível tecnológico. Vou dar um exemplo banal mas criativo do que se pode fazer. Há centros no Brasil de crianças e jovens que têm mentores para aprender inglês com idosos que vivem nos EUA. Sabem inglês, têm tempo, e são tutoras através de skype. Beneficiam os estudantes brasileiros e beneficiam os idosos que nem os conhecem pessoalmente mas sentem-se úteis, ao mesmo tempo que combatem a solidão. Há mil formas de se compensar o contato humano direto que antes acontecia numa família tradicional. São tempos que não virão mais. Não adianta a gente ficar se lamentando, nem lembrando que antigamente a vóvozinha era assim e assado. Antigamente é passo, temos é que pensar o presente com os instrumentos de hoje. Temos de ser criativos numa sociedade em que um de cada três pessoas tem mais de 65 anos, quando antes era um em cada 10.

Que modelos de sucesso de envelhecimento ativo podemos copiar para termos qualidade de vida até tarde?
Primeiro quero reagir ao uso do verbo copiar. Nenhum país pode ser copiado, pois cada um tem a sua cultura e, sobretudo, cada um tem o seu nível de desenvolvimento. Não adianta Portugal copiar o modelo da Suécia ou Dinamarca porque eles são muito mais ricos e têm experiências culturais próprias de um conceito de bem estar social próprios. Até certo ponto, Portugal tenta copiar esse conceito de estado de bem estar social do norte da Europa. A medicina ou a saúde globalizada, como temos hoje, teve um tremendo impacto positivo para idosos. Porém, temos de respeitar o nível económico do país. Portugal envelheceu muito mais rápido com muito menos riqueza. Se for tentar fazer o que a Dinamarca faz vai ser inviável e insustentável. Temos de pegar boas ideias e sermos criativos a adaptá-las ao contexto do Brasil, Portugal ou da Guiné Bissau, quer às suas caraterísticas, como aos seus recursos…

Escassos…
Nenhum país é tão pobre que não possa envelhecer com dignidade, e nenhum país é tão rico que não possa aprender com comparações internacionais. Uma das coisas que precisámos estimular no Brasil, e julgo que em Portugal, é estimular mais pesquisa gerontológica para obter um saber mais apropriado ao nosso contexto. Segundo, ter e dar mais possibilidade aos idosos de se expressarem. Isso é que está na base de um país amigo do idoso. Ele é o protagonista. Ninguém entende mais sobre o envelhecimento do que quem o experimentou. E, no entanto, políticos e investigadores tentam adivinhar. Aí a premissa é: nada para nós sem nós. Nós temos de ter voz, o nosso papel, o nosso protagonismo. Se nos derem a oportunidade de sermos ouvidos, vamos ter muita ideia boa para ser aproveitada. Este é o princípio da OMS, onde comecei o projeto cidade-amiga do idoso com 33 cidades. Hoje são 1800 em todo o mundo. Um movimento que se tornou viral exatamente com base no princípio de baixo para cima. Ouvindo e dando protagonismo a quem envelheceu.

Envelhecer é mais fácil para os homens ou mulheres?
Muito mais fácil para os homens. A sociedade foi feita para e pelos homens. Ainda falta muito para as mulheres terem uma participação de igualdade. Quem cuida maioritariamente é a mulher e quem é maioritariamente cuidado é o homem. E quem mais deixa de ser cuidada? A mulher, que quando precisa não tem mais a família. Em geral é ela que fica viúva e não ele. E quando o homem fica viúvo, consegue mais facilmente se casar de novo para ter alguém que cuide dele. Estamos a décadas de se poder dizer que homens e mulheres envelhecem da mesma forma.

O que acha do termo terceira idade?
Não gosto. Colocar em compartimentos dificulta. O que é a terceira idade? Não sei o que é a primeira e a segunda. Terceira idade é colocar todos os maiores de 65 anos na tal da terceira idade? Então eu estou no mesmo caixote que a minha mãe que tem 98 anos e sofre de Alzheimer, com necessidades muito diferente das minhas. Eu estou aprendendo com ela, me inspirando nela. O meu trabalho tem um norte guiado por ela.

Vive consigo?
Vivemos a um quarteirão de distância. Ela envelheceu no apartamento no Rio, em Copacabana, onde morou desde que casou há 73 anos. Mas sou privilegiado porque tenho condições de a manter em casa com cuidados 24 horas por dia. Também porque tenho irmãos. Mas é uma exceção e estou preocupado por saber como as mulheres que não têm filhos em condições económicas para os manter em casa na ausência de instituições de longa permanência e de qualidade. Como resolver o problema do envelhecimento com dependência e penúria é o desafio grande.

O Estado tem de ser o cuidador?
Não tem outro jeito. Não tem outra solução. Um Estado moderno tem de ser um Estado solidário. Solidariedade é a palavra que melhor rima com longevidade.

Hoje teme-se mais a velhice ou a morte?
Temos uma herança cristã, católica e romana. Ainda não resolvemos nas nossas cabeças o desafio da morte. A morte é como se fosse a falência. Um médico que permite que um paciente morra é como se estivesse falindo. A ênfase é em curar, cuidar. Ainda estamos engatinhando no sentido de termos uma atitude mais adequada aquilo que é inevitável. O importante é ter qualidade até ao fim, enquanto houver vida.

Considera-se idoso?
Tenho 70 anos. Claro que sou idoso, mas um idoso ciente dos meus direitos, ativo, gritando alto. Fui da primeira geração que criou o termo adolescência, que não existia como conceito antes da II Guerra Mundial. Fomos nós os baby boomers numerosos, com mais saúde e nível de educação mais alto que fizemos os movimentos estudantis nos anos 60, que virámos a mesa, que tomámos pílula e usamos métodos anticoncecionais, que controlámos a nossa sexualidade e reprodução. Somos os que estão envelhecendo. Como é que vou ser um velhinho igual ao meu pai ou meu avô? Vou ser diferente. Fui um adolescente, hoje sou um gerontolescente muito ciente dos meus direitos.

Isabel Paulo
Expresso Diário 16.06.2016