No dia 15 de julho do ano passado o presidente francês Hollande propôs a constituição de uma “vanguarda” da União Europeia (UE), constituída por países da Zona Euro dispostos a aprofundar o processo de integração. Não especificou quais seriam os países desta vanguarda, mas o seu primeiro-ministro clarificou: seriam os fundadores da CEE. O ministro da Economia, Emmanuel Macron, em nome pessoal, havia antecipado este anúncio em maio, numa entrevista em que ressuscitou a ideia de uma Europa a duas velocidades.
As ideias de núcleo duro e de Europa a duas velocidades não são uma especificidade francesa. A sua origem é um manifesto do grupo CDU/CSU no Parlamento alemão, da autoria de Wolfgang Schäuble, o antidemocrático e maldoso político que está à cabeça de um novo ataque a Portugal e ao seu legítimo Governo. Na sua proposta, o núcleo duro incluía, além da Alemanha, a França, a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo, podendo mais tarde alargar-se à Espanha, à Itália e ao Reino Unido, caso resolvessem “certos problemas”.
Vale a pena recordar tudo isto, pois há sinais de algum acordo franco-alemão em torno destas ideias. Isso torna plausível que a resposta da UE ao aprofundamento da crise decorrente do “Brexit” e da situação da Banca europeia passe precisamente por aqui: um aparente grande salto em frente (acelerada marcha atrás no que a valores democráticos, conquistas sociais, culturais e políticas diz respeito), liderado por uma pretensa “vanguarda”. Terão sido só simbólicos a reunião de fundadores da CEE e o encontro íntimo a três (Alemanha, França, Itália), convocados pela senhora Merkel?
Os cidadãos do Reino Unido (RU) decidiram que o seu país sai da UE. Independentemente do que cada um de nós pensa sobre a opção tomada, há três factos imutáveis:
- i) a UE nunca foi sinónimo real de Europa;
- ii) o RU foi, é e será Europa;
- iii) para o bem de todos os povos, são imprescindíveis boas relações e cooperação ampla entre os diversos países e povos europeus.
Para Portugal e para outros países da Zona Euro com uma elevada dívida externa, o projeto daquela “vanguarda” não representa nada de bom. Viver no núcleo duro, se alguma vez fôssemos convidados para o clube, significaria uma condenação a um eterno “ajustamento” por via da desvalorização salarial, de cortes na despesa e nos serviços públicos. Por outro lado, viver fora dele significaria viver com uma moeda sem ter o direito de participar na definição das políticas da União Monetária – uma situação que só tem paralelo em relações coloniais.
A proposta do núcleo duro deve ser rejeitada. Não é por aí que podemos “ter uma melhor Europa e uma Europa mais útil”. A obsessão pelo pelotão da frente alimentou políticas irresponsáveis e foi o que nos empurrou para o euro e para a austeridade. As políticas do “novo” núcleo duro impedir-nos-iam de respirar e sair da crise, estivéssemos dentro ou fora dele.
Se alguma vez existir um grupo de governos que se arrogue, em parceria com a Alemanha, o direito de formar uma vanguarda, condenando todos os outros a usar o euro, o que lhes deve ser dito é que a implicação da sua escolha deve ser a criação de uma nova moeda (por certo mais forte) para eles próprios, deixando o euro para os que forem excluídos ou não quiserem embarcar na vanguarda.
O sistema financeiro e as opções estruturais da economia têm de ser concebidos para servir objetivos de solidariedade, de cooperação, de respeito pela soberania de cada Estado e pela democracia; têm de rechaçar desigualdades e visar a harmonização no progresso. Com estes pressupostos talvez ainda fosse possível evitar a derrocada de todo o edifício. De outra forma, não! A desagregação e o desmoronamento da Europa democrática e de progresso que os povos desejam serão totais, surgindo uma proliferação de conflitos nacionais.
Manuel Carvalho da Silva
INVESTIGADOR E PROFESSOR UNIVERSITÁRIO
JN 03.07.2016
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