Depois do Brexit, Renzi anunciou que “a União Europeia não está morta”, mas talvez tenha levado longe de mais o manifesto de Ventotene como libreto de uma refundação da UE
Por alguma razão a arte operática atingiu o máximo esplendor em Itália. O sentido da cenografia, a importância dada ao “fare una bella figura”, o jogar com a simbologia, a força da palavra na libertação das emoções, são artes maiores no bel paese. Este verão não foi exceção e, a pretexto do aniversário do manifesto de Ventotene, Renzi juntou Merkel e Hollande no deck daquilo a que os italianos insistem em chamar um “porta-aviões” (e o escolhido foi, como convinha, o Garibaldi, já que o Cavour apelaria ao realismo…). O trio alinhado, com as ilhas Ponziane em fundo, homenageava os exilados na ilha de Ventotene e, dentre estes, um outro trio (Altiero Spinelli, Ernesto Rossi e Eugenio Colorni) que redigiu em 1941 o manifesto de Ventotene: “Per una Europa libera e unita.”
Depois do Brexit, Renzi anunciou que “a União Europeia não está morta”, mas talvez tenha levado longe de mais o manifesto de Ventotene como libreto de uma refundação da UE. Afinal, o documento, que só foi tornado público em 1944, anunciava “la creazione di un solido stato internazionale”, o que, em agosto de 2016, soará a muitos como o anúncio da chegada do Anticristo.
Procurando ir mais além da cenografia e do simbolismo, o que sobrou da conferência de imprensa dos “grandes” da UE? Comecemos pelas ausências: o Reino Unido já não era convidado para estes momentos simbólicos, mas depois do Brexit não pode nem quer ser convidado. A Polónia passou à categoria dos “infréquentables”. A Espanha não tem, desde dezembro de 2015, aquilo a que se possa chamar um governo. A Comissão Europeia deixou definitivamente de ter existência própria e o seu ersatz, o presidente do Conselho Europeu, nunca chegou a tê-la. Os restantes Estados-membros não contam.
Renzi, onerado por um referendo constitucional semissuicida que decidiu convocar, explicou ao que vinha e pediu “lo stesso tipo di equilibrio, o di pragmatismo, che nel recente passato è stato mostrato nei confronti di paesi como Portogallo e Spagna”.
Possuída pelo calor mediterrânico, a sra. Merkel brindou-nos com um fabuloso lapsus linguae em que anuncia “Europa kann, sollte (…)” (a Europa pode, deveria). O modo condicional só tem um tempo, o futuro do pretérito… Que a Europa pode, todos sabemos e acreditamos. Que a Europa deveria é já uma afirmação que divide os europeus. Que a Europa queira é algo que a sra. Merkel deixou claro que não vai acontecer para além do regateio das metas orçamentais pedido por Renzi.
Enquanto decorria este momento operático, no mundo teutónico era publicado um estudo dos “cinco sábios”, os economistas que aconselham o governo alemão. O estudo, dedicado às dívidas soberanas, vem assinado por Lars Feld e propõe duas medidas de uma simplicidade germânica. Em primeiro lugar, que os Estados-membros que solicitem a ajuda do mecanismo de estabilidade europeu (ESM, o mecanismo europeu de resolução de crises financeiras) vejam adiados os prazos de reembolso dos títulos de dívida pública que emitiram. Em segundo lugar, o ESM avaliará o valor dos títulos de dívida pública do Estado em causa e poderá redefinir o seu valor nominal (em baixa, caro leitor, em baixa). Os nossos amigos alemães querem copiar para a dívida dos Estados os mecanismos de bail-in que desde 1 de janeiro vigoram para a dívida dos bancos. E com isso pretendem reduzir a possibilidade de os seus bolsos contribuírem para o pagamento das dívidas alheias.
Se este libreto se converter em realidade, a apetência pelos títulos de dívida pública dos Estados-membros que não a Alemanha será a mesma que historicamente as crianças têm mostrado pelo óleo de rícino.
Mário João Fernandes