Projecto faz pequenas intervenções cirúrgicas gratuitamente nas casas de meia centena de idosos, no Porto, para evitar acidentes e melhorar a qualidade de vida. É a segurança, autonomia e mobilidade que move este grupo de voluntários. Em troca, recebem um mar de afectos.
FERNANDO VELUDO/INFACTOS |
As pernas cansadas de Carmen Pereira, 82 anos, já não a deixam descer, sozinha, as íngremes escadas do antigo prédio, no Porto, onde mora há mais de meio século. Muito menos tomar banho na banheira que tem tantos anos quantos os das paredes pontuadas com fotos do falecido marido e dos três filhos. “Se não fossem as meninas do projecto Reabilitação Habitacional e Intervenção Social (RHIS) a instalarem a cadeira giratória, na banheira, ainda hoje não tomava lá banho”. Recebe-as, por isso, com calorosos beijos e abraços, sorriso rasgado e muita conversa.
A RHIS calcula que, só em 2014, cerca de 24 mil idosos viviam sozinhos em todo o país. Muitos deles em habitações que não estão adaptadas às suas necessidades, quer pela organização do espaço que pela ausência de infra-estruturas adequadas. O que coloca em risco a sua mobilidade, autonomia e segurança. Em casas onde já imperam demasiado a solidão e os problemas de saúde que se entranham no corpo.
Foi para eles que, em 2011, a equipa do RHIS criou este projecto, inserido no Grupo de Acção Social – G.A.S. Porto, uma Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (ONGD) que também tem projectos de apoio humanitário em Moçambique e Timor Leste.
O alerta partiu precisamente dos voluntários do G.A.S. Porto que, durante as visitas e acompanhamento aos idosos da cidade, “se aperceberam que as casas não estavam adaptadas às necessidades e que podiam ser feitas intervenções para solucionar o problema e evitar riscos de quedas”, assim como proporcionar-lhes uma melhor qualidade de vida, explica Fátima Lopes, assistente social do RHIS.
A Fátima Lopes juntou-se a arquitecta Beatriz Portilho, as únicas profissionais, e mais quatro voluntários que, num único projecto, juntaram a reabilitação das casas ao acompanhamento social de cerca de 70 idosos no Porto. Destes, já 50 beneficiaram, desde 2013, de pequenas intervenções gratuitas. “Como um alteador de sanita ou bancos de apoio na banheira para evitar o risco de quedas”, conta Beatriz.
O primeiro ano de financiamento foi assegurado pelo programa EDP Solidário. Vieram depois as receitas provenientes do Rock’n’Law 2013, um evento promovido por sociedades de advogados, a que se somou depois a verba do Prémio BPI Seniores 2014, que o RHIS venceu. Acrescem ainda os muitos materiais que várias empresas cedem. A mão-de-obra tem origem nos mais de 250 voluntários do G.A.S Porto que arregaçam as mangas sempre que há uma intervenção. Há, contudo, casos que são encaminhados para programas especializados em reabilitações mais profundas e estruturais, como o projecto Porto Amigo.
Voluntários já são família
Concluídas as pequenas obras, sempre que os elementos do RHIS regressam às casas, são recebidos
Carmen e a sua cadeira giratória para entrar na banheira FERNANDO VELUDO/INFACTOS |
com um mar de afectos. Como Beatriz e Fátima. Quando as vê, Carmen enche-as logo de beijos e abraços. “Entrem que já fazem parte da família!”. E pergunta, entusiasmada por ter casa cheia: “Vêm ver a cadeira giratória que me ofereceram para a banheira? Foi a melhor coisa. É muito mais confortável e seguro tomar banho sentada, sem risco de queda”, explica.
Passos arrastados e demorados, Carmen lá lhes diz para se sentarem, porque tem, “num instante, de pôr um olhinho no fogão, não vá sopa queimar ao lume”. Conta depois, radiante, que tem “um arquivo na cabeça que dava para horas de conversa”. Conta-se pelos dedos as vezes que tem sentido a azáfama da cidade. “Não consigo descer sozinha as escadas com as dores das pernas cansadas”. As mesmas que teimavam em não entrar na banheira, mesmo com banho assistido. Ainda continua a ser assistido, mas ao menos já o consegue fazer.
E lembra que foi o cabo dos trabalhos para as meninas a convencerem a substituir a banheira por uma base de duche, que era a primeira opção da arquitecta. “A Dona Carmen não quis por uma questão sentimental. E quem manda é o dono da casa”, conta Beatriz. Na altura de decidir, veio ao de cima toda uma avalanche de emoções e recordações: “Apeguei-me às minhas coisas”, desabafa Carmen, enquanto agarra a mão de Fátima, como que em busca de algum conforto. Pesaram os 50 anos da banheira, tantos quantos os que mora naquela casa, onde construiu vida e família. Agora passa muito tempo sozinha, ainda que um filho a visite e tenha a companhia da senhora que a ajuda na lida da casa e na hora do banho.
Como netos
Maria Alice Lima, 84 anos, é outra beneficiária do projecto. Tal como Carmen, também “não conseguia tomar banho na banheira por causa da difícil mobilidade das pernas”. Mas nem pestanejou quando lhe perguntaram se a podiam substituir. “Ficou com a base de duche mais famosa da vizinhança”, atira Beatriz na brincadeira. “Esta santa ainda me pôs uma pega para abrir a janela da casa de banho”, recorda Maria Alice, enquanto lhe segura a mão com ternura e sorri, cheia de vida.
Além destas pequenas obras, os voluntários do RHIS tentam também combater as situações de isolamento e de exclusão social, além de darem apoio no acesso a serviços públicos ou à realização de tarefas quotidianas. Por isso, há visitas semanais aos 70 idosos abrangidos pelo projecto. “Muitos destes voluntários são como uma figura de neto a visitar a avó”, realça Fátima Lopes. E, para muitos, estas visitas são uma pedrada no charco da solidão em que vivem, sem rectaguarda familiar. O que não é caso de Carmen e Maria Alice que, ainda que vivam sozinhas, têm sempre os familiares por perto. “O meu filho visita-me todos os dias”, diz Maria Alice. Mas abrir a portas aos voluntários é “sempre uma festa”. E do que falam? “De tudo. Sobre a vida deles e a minha. Fazem companhia durante umas horas”.
Já Carmen “conta-lhes a vida toda”: lembra os seus quatro anos de menina expedita, quando fazia os recados ao pai alfaiate, em Gondomar, nos arredores do Porto. Recorda, com saudade, o tempo de costureira e depois modista. Agora, sente-se atraiçoada pelas mãos cansadas que já não fazem moldes nem costuram. Passa, por isso, os dias a ver televisão ou entretida com outros afazeres da casa. Conta ainda com a visita do filho e, mais frequentemente, da senhora que a ajuda. “Mas tenho a segurança da pulseira de teleassistência que uso no pulso”, conta.
Como é que o RHIS chega até estes idosos? No caso de Maria Alice foi a Junta de Freguesia que sinalizou e contactou o G.A.S. Porto. Mas, existe toda uma rede de parceiros na cidade, como juntas de freguesia, Santa Casa da Misericórdia do Porto, entre muitas outras entidades, explica Fátima. Depois, um técnico social monitoriza cada um dos casos, articula a intervenção necessária e encaminha os idosos para respostas mais adequadas.
Manual para adaptar a casa ao idoso
Estas pequenas intervenções, de baixo custo, também podem ser feitas pelos próprios idosos, familiares ou cuidadores, com a ajuda do “manual para adaptar a casa ao idoso” que Beatriz Portilho, Fátima Lopes, Nelson Pereira e Pedro Silva, do RHIS, lançaram em papel e na internet. Eis alguns conselhos:
– O início de cada degrau deve estar sinalizado.
– As maçanetas das portas devem ser do tipo alavanca.
– O telefone e o serviço de teleassistência devem estar ao alcance a partir da cama
– Os tapetes devem ser retirados do quarto para evitar quedas.
– Os móveis devem estar a uma altura de fácil acesso para não ter de subir a bancos
– Colocar os objectos mais pesados nos armários inferiores.
– Na casa de banho, a porta deve abrir para fora com maçaneta tipo alavanca para melhor socorrer a vítima no caso de queda.
– A base de duche deve ser antiderrapante.
– A sanita deve estar mais alta para ser de fácil utilização. E ter barras de apoio laterais.